segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Arrais Diogo 

Diogo Justino dos Reis — o Arrais Diogo — faleceu em 23 Março 1927, com 64 anos. Foi um verdadeiro símbolo da classe piscatória e venerado por todos os seus conterrâneos.

Sendo analfabeto, era contudo tratável e muito inteligente, revelando bastos conhecimentos da pesca e assuntos hidrográficos, pois conhecia perfeitamente os fundos de toda a Costa, pelas suas constantes experiências

A fama dos seus conhecimentos de náutico sabedor e destemido, chegou até junto de El-Rei D. Carlos, que sendo um grande amante da pesca e um oceanógrafo erudito, quis um dia conhecer o velho pescador de Sesimbra.

Levado um dia o Arrais Diogo à presença de D. Carlos, quando Sua Majestade se encontrava a bordo do iate Amélia, ancorado na sua baía, o monarca sentiu logo grande afeição pelo pescador porque, embora as suas palavras fossem rudes, o seu peito albergava um excelente coração e o seu cérebro era dotado de inteligência. Daí em diante, sempre que D. Carlos fazia as suas viagens de recreio até à baía de Sesimbra, o Arrais Diogo era convidado a ir a bordo do iate Amélia, porque o Rei gostava imenso de falar com o humilde pescador e aproveitar os seus vastos conhecimentos de pesca. Assim se foi criando grande estima entre D. Carlos e o Arrais Diogo.

*   *   *

Num dos dias do ano de 1888, numa tarde cálida de Agosto, o mestre Diogo estava na praia à sombra de uma aiola, quando o iate Amélia fundeou na nossa baía.

Pouco tempo depois, vê lançar ao mar um escaler, que trazendo a bordo alguns marinheiros e um oficial, se dirigia para terra. Esse oficial às ordens de D. Carlos era D. Fernando Serpa, que saltando em terra e vendo na praia o Diogo, mostrou logo o seu contentamento, pois vinha precisamente em procura do pescador, e em nome do Rei, convidá-lo a ir a bordo.

Era já tanta a confiança que o Arrais nem foi a casa mudar de indumentária, tal não era o à-vontade em que D. Carlos o colocava.

Uma vez a bordo, junto do Rei, seguiram em passeio pela Costa e, durante o trajecto, várias vezes foi interrogado sobre a profundidade de certos locais e o seu conteúdo, isto é, se os fundos continham rochedos, lodos ou areias. As respostas eram prontas e concisas, porque foram confirmadas pelas experiências feitas depois com sondagens.

Por vezes, e durante muito tempo, o Diogo foi hóspede do Rei.

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Noutra ocasião, estava o Arrais Diogo a pescar no mar da "Pedra" e D. Carlos, andando a passear pela baía num escaler, reconheceu ao longe o velho pescador.

Sublime momento se proporcionou a D. Carlos para ouvir o seu amigo...

Ordenou que o escaler se aproximasse da embarcação onde Diogo exercia a sua faina. O marítimo tão entretido estava, que nem deu pela aproximação do escaler, a que D. Carlos fez propositadamente parar o motor.

El-Rei então começou a puxar o aparelho com o pé. Neste momento Diogo volta-se e diz: — "Eh home! Eh home!". A esta repentina exclamação, D. Carlos não pode conter grandes gargalhadas e inicia-se então, com a maior afabilidade, as habituais conversas sobre pesca.

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Noutra ocasião, em que o mau tempo não permitia o exercício da pesca e o Arrais Diogo estava apoquentadíssimo com a falta de dinheiro, para ele e a família comer e pagar a renda das casas onde morava — pois por falta de pagamento já o senhorio o ameaçara de o despedir — uma ideia lhe absorveu o espírito: ir a Lisboa falar ao Rei e contar-lhe a sua situação. Se bem o pensou, melhor pôs em prática.

Chegado ao Paço das Necessidades, dirigiu-se à sentinela e disse-lhe: "Eu quero falar ao Rei". O soldado, olhando de soslaio para o pescador, já pela forma como se lhe dirigiu, como ainda pelo simples trajo, não fez caso das palavras de Diogo. Este, vendo o desdém com que era recebido pela sentinela, continuou insistindo, suplicando em altos gritos: "Quero falar ao Rei, quero falar ao Rei...", até que, ao barulho, vieram mais elementos da guarda e o oficial comandante que o interrogou: — "O que é que você quer ?"

O Arrais Diogo volta à carga: "Quero falar ao Rei". A insistência foi tão grande que o oficial comunicou ao coronel almoxarife a presença do visitante e da sua teimosia. Verificada a identidade do pescador e informado El-Rei do indivíduo que era, do estado em que se encontrava e — quando todos imaginavam que não só a entrada lhe seria recusada, como ficaria preso — enganaram-se, porque D. Carlos ordenou que o introduzissem no Paço e o conduzissem até junto dele, deixando toda aquela gente boquiaberta, pela consideração que tal homem merecia ao Rei.

Sempre que o Arrais Diogo tinha falta de dinheiro, se dirigia a D. Carlos e sempre foi carinhosamente atendido.

Uma ocasião o Rei ofereceu-lhe uma colocação, mas o pescador recusou uma velhice descansada, só para poder andar livremente no mar que ele tanto adorava e donde arrancava o pão quotidiano.

Podíamos relatar aqui mais alguns factos da intimidade entre o Rei e o humilde pescador, mas os que deixamos apontados são suficientes para demonstrar em quanta estima tinha Sua Majestade o Arrais Diogo.
Publicado originalmente n'O Sesimbrense
n.º 694, de 5-11-1939, sem indicação de autor.