sábado, 6 de fevereiro de 2016

Carnaval em Lisboa
Carnaval de outros tempos

O carnaval em tempos na Piscosa, era o divertimento que proporcionava à mocidade Sesimbrense alegre e irrequieta da época, umas noites bastante divertidas, assim como a folia mais apetecida por muitas damas recolhidas lá do burgo, que aguardavam ansiosamente essas noites para expandir em espirituosas e animadas conversações, toda a sua malícia... a coberto da máscara com que se apresentavam anonimamente nas Sociedades de Recreio, a ocultas muitas vezes dos maridos.

De dia os marítimos divertiam-se a seu modo pelas ruas, excentricamente vestidos, fumando de cachimbo, em forma de minúsculos navios embandeirados em arco. O velho gerica exibia em público bem organizadas danças que mais tarde o Farto quis imitar, com a célebre paródia à revolta do Brasil, em que ele representava garbosamente fardado, o papel de almirante Floriano Peixoto, tendo como ordenança o popular Cabo Elísio o mais leal dos seus compatrícios.

Os rapazes da terra e as formosas pequenas do tempo, tinham pelas três noites do entrudo, uma particular devoção... Herculano Pinto Soares, era de entre a nossa rapaziada, aquele que melhor se ajustava ao papel de mulher, para iludir nessas noites os amigos que se julgavam possuir o condão de adivinhar quem era esta ou aquela máscara mais engraçada ou melhor vestida, apresentando-se corretamente mascarado em traje feminino.

Baixo, de boa compleição física, pulsos roliços e sobretudo muito espirituoso, o Herculano sabia como nenhuma rapariga, conquistar rapidamente por este processo, o coração dos homens, impacientemente desejosos em descobrir quem seria aquele lindo rosto que uma simples máscara de pano verde ou vermelho, cobria tão cuidadosamente, deixando apenas a descoberto uns olhos pretos tentadores… E enquanto nós procuravamos descortinar de entre a enorme concorrência de máscaras, a preferida do nosso coração para com ela dançar a primeira polka, compunha ele em casa muito em segredo a sua cabeleira postiça e a "toilete" carnavalesca com que dali a pouco ia "embarrilar" os próprios amigos, fazendo ralar o bofe e mais miudezas a quantos dele se acercavam com amorosos galanteios, na mira de uma conquista... Deixando-os finalmente com água na boca...

O Herculano assim mudado de "sexo", colocava-se a uma esquina qualquer, aguardando o primeiro grupo de máscaras que transitassem de uma para outra Sociedade, introduzindo-se no rancho. A sua entrada nas salas não era por isso notada com facilidade. Os brincos postiços de que usava servir-se, favoreciam-no muito na astúcia empregada para iludir os mais finórios porteiros, e daí a pouco ei-lo dançando com qualquer "sofredor" do seu verdadeiro sexo que convencia rapidamente, dizendo-se a donzela mais pura do universo!

Certa vez o nosso Herculano vestiu-se a rigor como era seu hábito. Postou-se a uma esquina, e em dado momento envolveu-se num grupo numeroso de máscaras que se dirigia ao Grémio Sesimbrense. Após o reconhecimento do estilo, entraram na sala. O pianista Lorido tocou uma valsa e o Herculano sem mais convite agarra-se a uma máscara do seu rancho e ele aí vai sala fora bambaleando-se exageradamente para não ser reconhecido. Ainda não tinha dado uma volta completa na sala de baile, quando o seu par lhe segreda ao ouvido: – Maria, tenho as meias caídas; vem comigo lá dentro ao gabinete.

O nosso amigo Herculano suspendeu rapidamente a dança e seguiu com o seu par para o camarim das mulheres, como nós lhe chamávamos no teatro. Fechada a porta por dentro, a companheira do Herculano, tomando-o por uma das suas mais íntimas amigas, repetiu novamente: – Maria, puxa-me as meias para cima e põe as ligas no seu lugar: o espartilho não me deixa baixar à vontade.

Herculano Soares obedeceu prontamente, compondo tudo paulatinamente com exagerados requintes de amabilidade, mas trémulo e comovido ao contemplar tão perfeito e delicado modelo de mulher, e em fala de máscara que ele muito bem pronunciava, atirou-lhe com esta: – Ó rapariga, tira a máscara que estás suada!

O Herculano tinha em vista conhecer a rapariga para no dia seguinte lhe ralar os ossos, contando-lhe a cena da véspera, para ele memorável!... Mas a sua formosa companheira não lhe satisfez a curiosidade por qualquer motivo e o Herculano, que tanta água tinha feito crescer na boca dos outros em sucessivos bailes, saiu naquela noite do camarim das mulheres... a engolir em seco!...

Seixal, 26-10-1930
João Pólvora
Publicado originalmente n'O Sesimbrense
n.º 233, de 2-11-1930