quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

1$00 por um peixe espada!

Ramada Crespo

 
Já pensaste, banhista amigo, no trabalho que dá a pescar o peixe espada ou a «viúva» que tu mercas por um mísero escudo, para almoçares ou jantares?

Tu sabes lá os perigos que os pobres pescadores passam para apanharem nos seus aparelhos. esses peixes que fazem a tua delícia e a de tua família ?

Não sabes, não. E como não sabes nem avalias nós vamos narrar, sucintamente, a árdua tarefa da pesca do alto, a sua engrenagem curiosa, para que faças uma ideia aproximada de quanto custa a esses mourejadores ganhar um pouco de pão. Ouve, pois:

À hora em que te recolhes a casa, a fim de te entregares aos acolhedores braços de Morfeu, já pelas ruas os «moços» dos barcos do alto fazem ouvir o seu grito característico, chamando para a lida os «camaradas»

– Ó ti’Tóóóónio – brada o pequeno moço, enchendo os pulmões de ar, para que o seu grito se ouça bem.

– Já ouvi; repaz – responde o «camarada», saindo do seu sono de uma ou duas horas.

E, decorridos poucos minutos, o «camarada» aí vai caminho da «loja de companha», saco com pequena refeição preparada, a qual muitas vezes se resume a um pouco de pão seco e de um decilitro de vinho. Tudo a postos, motores a roncarem, a barca, com seus 12 a 14 tripulantes, dirige-se à armação no intuito de «meter isca».

Se a armação apanhar peixe miúdo – sardinha ou carapau – o arrais da barca compra-lhe certa porção e faz-se ao mar alto em cata de pescado graúdo.

O mar fica longe, a umas 4 horas de caminho da costa, e esse tempo é empregado a «iscar» o aparelho, operação que consiste em colocar uma sardinha ou um carapau em cada anzol.

À medida que se vai aproximando do local da pesca, o mar vai também mudando de aspecto. Ondas alterosas, vagalhões, ameaçadores, erguem-se na frente da frágil embarcação, cujo arrais manobra o leme com perícia, evitando o embate das vagas.

Quem vê a quietude das águas na baía, não pode avaliar o que tem de perigoso e de falso esse mar a algumas milhas da costa. Arrepia, causa calafrios na espinha. Mas eles, esses pescadores afeitos ao perigo, vão vencendo os obstáculos e chegam finalmente ao seu ponto de mira.

Lançada a sonda com umas tantas braças de corda – calamento soe chamar-se na pesca – e verificado estar em cima do mar, os aparelhos são atirados à água, operação que requer conhecimentos, perícia e paciência.

Cada anzol tem a defendê-lo dos dentes do peixe uns centímetros de arame e só depois leva o cordel chamado «estrovo».

Para os aguentar a uma certa profundidade são presos e em séries a umas pedras, a que se dão o nome de «peões», ficando a flutuar as «boias», pequenas cabaças hermeticamente vedadas, que se distanciam uns metros.

Aparelhos na água, os «camaradas» descansam um pouco, uns dormindo um nadinho, outros, comendo o almoço.

À voz do arrais os aparelhos são içados, tirando-se-lhes o peixe – quando o traz – e prendendo-se os anzóis a pequenos pedaços de cana, de feitio especial, formando as «talas».

Tudo pronto, regressa a barca à costa – mais quatro horas a caminho.

E tu, banhista amigo, que estás na praia aproveitando as carícias dos últimos raios de sol, a vês chegar.

O resto da tarde e as primeiras horas da noite são empregados no amanho dos aparelhos, para daí a pouco voltar ao mar.

Mas isto é de verão.

E de inverno, quando o vento sul ruge furiosamente e a rebentação é de assombrar? Oh! de inverno! Mil vezes esses heróis vêm em frente dos olhos a morte e mil vezes a vencem.

Ocasiões há em que saem sob temporal medonho, confiados na segurança dos motores ou no vigor dos seus braços, só porque em casa nesse dia não há pão e porque já não o houvera na véspera. Os filhos choram com fome e é preciso arranjar-lhes de comer.

E quando eles partem, ficam em terra as esposas, as mães, com o coração amarfanhado, em constante sobressalto, sempre à espera que lhes venham dizer que eles ficaram para todo o sempre sepultados no fundo desse mar tão amigo e tão traiçoeiro.

Mas se eles vencem a fúria dos elementos e chegam à vista de terra, os olhos dos que os vêm chegar assistem aos esforços formidáveis desses homens procurando tocar na praia. O mar varre a embarcação de proa à popa e por mais de uma vez ela desaparece nas vagas, para surgir uns metros além. Montanhas de águas impedem o regresso à praia e, então, vale-lhes essa pequena enseada a que por ironia se chama pomposamente Porto de Abrigo.

A esse pequeno molhe deve a classe piscatória o poder exercer a sua trabalhosa faina em dias terríveis, salvando muitas centenas de vidas.

Curiosa a maneira como são feitas as contas de companha.

Do lanço é tirada a despesa de gasolina, óleo, iscadura, direitos, vendagem, aluguer da loja, embarcação e mil e uma coisas várias, repartindo-se depois o remanescente pelos camaradas, em processo socialista. E tiram também determinada quantia, chamada parte de aparelho, que junto às que anterior e posteriormente se tiram e que se destinam à compra de aparelhos novos para substituírem os que acusam excesso de uso, ou para suprirem as faltas dos que a aguagem (correntes) faz perecer.

O «camarada» ganha em média, por cada mil escudos de pescado, vinte escudos de parte, além da pequena quantia denominada parte de vinho que ele reserva para vinho ou tabaco.

Já vês, banhista amigo, que é preciso a barca apanhar um conto de réis de pescado, para o pobre trabalhador do mar, que emprega uma noite e um dia de actividade constante, ganhar vinte escudos.

Mas isso poucas vezes sucede.

E, quando a barca vai ao mar, os homens trabalham como sempre e a pescaria é irrisória ou nenhuma, como se verifica semanas seguidas?

A despesa é quase igual à dos dias da fartura e o ganho passa a ser – como dizem esses desventurados – vinte mil réis empenhados.

Já se tem visto e é até corrente algumas barcas apanharem durante a semana quatro a cinco mil escudos de pescado e, ao fazer contas, caber a cada camarada trinta a quarenta escudos somente. É preciso pagar os empenhos anteriores, porque o pescador sesimbrense é honesto e tem por norma pagar a quem deve, já por temperamento, já porque, o não fazendo, não tem quem lhe fie o material para a próxima etapa piscatória.

E agora, banhista amigo, que já sabes quanto custa apanhar um peixe espada ou uma «viúva», e que estás ao facto dos perigos por que passam os pescadores, não regateies o seu valor quando na praia pretenderes comprar o peixe que fará a tua delícia e a de tua família.

E se desfrutais de influência nos meios oficiais, fazei quanto possas para que um autêntico Porto de Abrigo substitua em breve o desmantelado paredão que ostenta esse pomposo nome. Os pescadores sesimbrenses e toda a Piscosa de Camões te saberão agradecer.

Texto escrito por João Pereira Ramada Crespo
Publicado originalmente n’O Sesimbrense n.º 527, de 30 de Agosto de 1936

Viúva — chaputa (por causa da sua cor escura)
Companha — conjunto de camaradas que formam uma equipa de pesca associada a uma embarcação
Moço — categoria inicial da progressão na carreira de pescador, atribuída a menores; também designados como moços chamadores