quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A Princesa de Calhariz


No dia 19 de Outubro de 1760 foi sepultado no adro da Igreja Matriz do Castelo de Sesimbra, Manuel Damásio, "moço da copa da Excelentíssima Princesa de Calhariz". Este título de nobreza referia-se certamente a Maria Ana Leopoldina de Holstein Beck, casada com Manuel de Sousa, senhor do Morgado de Calhariz. Não seria de estranhar a presença da princesa em Calhariz, mas estranho era o facto de Manuel Damásio ter sido sepultado no adro da Igreja, por ser "pobre". Porque não teria a princesa oferecido os 600 réis necessários para que a sepultura se fizesse no interior da Igreja?

A princesa Maria Ana, na realidade, passava por grandes dificuldades. O marido tinha sido preso no final de 1758, envolvido no processo dos Távoras, acabando por morrer na prisão, sem direito a julgamento, e os seus bens tinham sido apreendidos. Os Sousas de Calhariz podiam ser considerados como membros da nobreza, ainda que não tenham tido qualquer título até à época de Pedro de Sousa Holstein, que foi, sucessivamente, nomeado Conde (1812), Marquês (1823), e Duque (1850). O seu avô, Manuel de Sousa, deteve o importante cargo de capitão da Guarda Alemã, um regimento de grande prestígio. Mesmo sem ser possuidor de título formal, Manuel de Sousa casou com uma verdadeira princesa: Maria Ana Leopoldina, de origem austríaca, que nascera na cidade de Linz em 2 de Agosto de 1717, filha de Frederico Guilherme, duque de Holstein e herdeiro da Dinamarca e Noruega. Ainda hoje os titulares do Ducado de Palmela usam os apelidos Holstein Beck, herdados de Maria Ana Leopoldina.

Registo do óbito de Manuel Damásio,
"mosso de copa da Exmª Princesa de Calhariz"
.

O processo dos Távoras

É bem conhecido o processo dos Távoras: um atentado à vida do rei D. José, em 1758, serviu de pretexto para perseguição aos adversários de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, no âmbito da política de centralização do poder e consolidação do Absolutismo Num processo que envergonha o Estado português da época – foi constituído um tribunal especial, formado por membros do Governo, que obedecia aos caprichos do primeiro-ministro – quase todos os membros da família dos Távoras, foram barbaramente torturados e executados numa grande cerimónia pública, a 13 de Janeiro de 1759.

O processo serviu também de pretexto para perseguir outras pessoas, e uma delas foi Manuel de Sousa, apenas por, supostamente, ter tido conhecimento prévio da conspiração. Foi feito prisioneiro numa altura em que se encontrava doente; colocado numa masmorra, num dos fortes da margem do Tejo, viria a morrer, menos de dois meses depois, sem sequer ter sido julgado.

A mulher, Maria Ana Leopoldina, saiu de Lisboa e refugiou- se em Calhariz, onde passou por grandes dificuldades, havendo vários testemunhos de que lhe faltavam meios de subsistência: um caso que teve ecos além-fronteiras, dada a notoriedade da nobre família austríaca. Uma das pessoas que tentou interceder, junto do Rei, por Manuel de Sousa e pela sua esposa, foi Manuel Teles da Silva, que era casado com uma irmã de Maria Ana Leopoldina. O próprio Marquês de Pombal, hipocritamente, escreveu uma carta em que parece condoer-se da situação da infeliz princesa, como se não fosse ele o principal responsável da desgraça:

«O processo de Dom Manuel de Sousa é certo que se deve continuar na forma da lei e de direito. Lembro-me contudo sobre esse assunto que aquele bárbaro se achava casado com a Princesa de Holstein per si digna de toda a clemência de Sua Majesta Majestade sendo uma pessoa de tão notória graduação pelo seu nascimento e sendo além disso cunhada de Manuel Teles da Silva, que já escreveu a favor de Dom Manuel de Sousa nos competentes termos que foram presentes ao dito Senhor. Sobretudo consta que a referida Princesa se acha em Calhariz na última indigência, sem ter de comer nem quem a sirva. E nestas circunstâncias me parece muito conforme à Real e incomparável piedade de Sua Majestade que, sendo o mesmo Senhor servido, me permita avisar a tal Princesa que se pode recolher a esta Corte parecendo-lhe, e que vendo-se a sua escritura dotal se lhe mandem separar logo e sem mais formalidades de juízo as arras [bens a herdar do marido] que pelo dito contrato se lhe devem.»

Esta carta, datada de 1 de Fevereiro de 1759, é um notável exercício de hipocrisia, atendendo a que foi escrita pelo principal responsável pela prisão de Manuel de Sousa. O registo do falecimento do criado da princesa, no final de 1760, prova que ela continuava em Calhariz e a viver em grandes dificuldades.

João Augusto Aldeia


[Texto originalmente publicado no jornal Mares de Sesimbra, edição n.º 26, 5 Janeiro 2016]