quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

15 de Fevereiro de 1941:
O Ciclone que abalou Sesimbra

No dia 15 de Fevereiro de 1941, um pavoroso ciclone assolou toda a costa portuguesa, provocando muitos estragos. Em Sesimbra as consequências foram terríveis: 4 mortos e numerosos feridos, muitas embarcações danificadas ou irremediavelmente destruídas, profundos estragos na marginal e no edifício da Sociedade Musical Sesimbrense, destruição do “chalet” junto à fortaleza, muitas casas inundadas, com grandes pejuízos, e destruição do molhe de Angra (onde se encontra hoje o porto de abrigo).

Também na zona rural do concelho se verificaram grandes estragos, com árvores derrubadas e searas destruídas. A catástrofe desafiou a comunidade sesimbrense, mas esta soube responder ao desafio. Ainda mesmo durante a violenta tempestade, actos de heroísmo permitiram salvar muitas vidas: João dos Santos Laureano, na praia da Califórnia, salvou, entre adultos e menores, 8 indivíduos; Carlos Ribeiro, o conhecido nadador sesimbrense, salvou igualmente muitas vidas. Três médicos destacaram-se no imediato no socorro às vítimas: Manuel José da Costa Júnior, Alberto Augusto Leite, e Manuel Florentino Matias, este último da recém estabelecida Casa dos Pescadores de Sesimbra.

Os Bombeiros actuaram também com prontidão, transportando os feridos, retirando a água das casas inundadas, removendo os escombros, onde descobriram o corpo de Emilio Gonçalves Correia, de 38 anos, soterrado na marginal, o qual deixaria uma viúva e 8 órfãos, o menor dos quais com 17 meses apenas. Outra das vítimas mortais, Primo António Nero, de 48 anos, deixou viúva e 2 órfãos. Também casados, mas sem filhos, faleceram Amaro Morais, de 59 anos, e Joaquim Pedro Gomes, de 43 anos.

Após a violenta tempestade, o tempo acalmou extraordinariamente, revelando-se uma tarde calma. Os sesimbrenses puderam então verificar a extensão da destruição que, para além da frota e apetrechos de pesca, danificou muitas edificações e a rede de águas e esgotos. Sem porto de abrigo adequado para a numerosa frota, era nas ruas da vila que ficava protegida dos temporais mas, desta vez, nem aí ficou a salvo.

Para além da perdas de vidas, os danos na frota de pesca foram os mais elevados: 113 embarcações partidas, e 196 desaparecidas. A reacção do Governo foi rápida: mandou que se fizessem inquéritos sobre os prejuízos sofridos em cada concelho afectado, e um mês depois anunciava que iria financiar de imediato a aquisição de apetrechos perdidos e a reparação das embarcações danificadas, a que se seguiria a construção de novos barcos para substituição dos que tinham desaparecido - 20 % desta despesa seria considerada como subsídio a fundo perdido, e o restante deveria ser reembolsado pelos pescadores por desconto no produto da pesca, ou seja, à medida das suas possibilidades, e sem cobrança de juros. Para reconstrução da frota foi necessário, em primeiro lugar, fazer o apuramento dos prejuízos, e depois contratar os carpinteiros; em Sesimbra utilizou-se o espaço do Parque Recreio Popular como estaleiro improvisado. E como em Sesimbra não havia carpinteiros suficientes para tanto trabalho, alguns barcos foram construídos na Mutela.
Os danos mais preocupantes verificaram-se na frota de pesca: não só pela dimensão dos prejuízos, mas sobretudo porque impediam a comunidade de continuar a trabalhar e a prover-se de meios de subsistência.


Tudo isto foi feito com a rapidez possível, mas não resolvia o problema da alimentação, que se colocava de imediato: para isso a Comissão de Socorros reforçou o fornecimento de sopas, onde despendeu 1.300 escudos diários, de que beneficiavam 2.300 pessoas, tendo ainda atribuído subsídios às famílias de Amaro Morais (100 escudos mensais) e Emílio Gonçalves Correia (420 escudos mensais).

O auxílio às vitimas do ciclone constituiu a prova de fogo da Casa dos Pescadores, instalada há muito pouco tempo em Sesimbra. Foi com esta instituição corporativa que o “estado providência” chegou à vila piscatória: apoio médico e de enfermagem, parteira, construção de habitações, empréstimos para aquisição a petrechos de pesca e de embarcações, foram algumas das iniciativas da Casa dos Pescadores de Sesimbra. Tendo sido os pescadores a classe mais afectada, foi naturalmente à Casa dos Pescadores que coube a maior fatia do auxílio. Por um seu relatório citado n’O Sesimbrense em 1944, ficamos a saber que financiaram com 535 mil escudos a construção de novas embarcações, com 80 mil escudos a reparação de outras, e com 125 mil escudos a aquisição de apetrechos de pesca.

Outra importante ajuda veio dos Duques de Palmela, que facultaram, das suas matas, a madeira necessária para diversos fins: para reparação e constução de barcos, para uso doméstico como combustível - na maior parte das casas a comida era cozinhada desta forma - e ainda para construções diversas em terra.

Agradecimentos e Homenagens

Um anos após o ciclone, a vila agradeceu o auxílio, homenageando o presidente da Junta Nacional da Casa dos Pescadores, declarando-o “cidadão de Sesimbra” e dando o seu nome à marginal a nascente da Fortaleza: “Esplanada Comandante Tenreiro”. Na mesma ocasião, o Duque de Palmela foi considerado “Benemérito de Sesimbra”.

Na sessão solene, que decorreu no Salão da Vila Amália (actual escola de Santa Joana, junto à Biblioteca Municipal), para além de individualidades oficiais, tomam a palavra Henrique Tenreiro, O Duque de Palmela, e também o pescador José Francisco Viola, que, em nome de toda a classe piscatória, agradeceu os auxílios recebidos:

“Para todos os nossos agradecimentos bem sinceros. E declaro, em nome de todos os meus colegas, que não esquecemos tais benefícios, pois se não fossem eles, a miséria teria invadido os nossos pobres lares, sacrificando os nossos entes mais queridos.”
José Francisco Viola, agradecendo em nome dos pescadores.

Bombeiros no centro da tempestade

Um dos documentos mais interessantes sobre o Ciclone é o relatório dos Bombeiros Voluntários de Sesimbra, elaborado dois dias depois pelo seu 2º Comandante, Mário de Mesquita Lopes.

Vários relatos acerca do ciclone referem as 11 horas da manhã como a do início da sua fase mais violenta, mas Mesquita Lopes indica que às 9 horas da manhã já o vento se fazia sentir fortemente, provocando danos nos telhados e chaminés, nomeadamente no próprio quartel dos Bombeiros.

Estranhamente, o primeiro pedido de socorros só chegou aos Bombeiros à 1 hora da tarde, e vindo do Zambujal: Manuel Ventura Júnior fracturara uma perna, devido à queda de uma chaminé, e teve de ser conduzido ao hospital. É logo a seguir que surge o pedido para intervenção na parte mais baixa da vila de Sesimbra. Segundo Mesquita Lopes, foi às 15 horas que o fenómeno meteorológico atingiu o auge. E foi também nessa altura que ruíram dois andares da “casa esqueleto”, uma construção usada para exercícios dos Bombeiros.

O relatório de Mesquita Lopes regista os feridos que deveriam ter sido conduzidos a Lisboa: Joaquim Pedro Gomes, com perfuração dos intestinos; Edmundo Vieira, com as costelas fracturadas; Joaquim Costa Gomes, com fractura de um pé; Martinho Cheis Chanoca, com fractura do maxilar. Mas a estrada para Lisboa revela-se intransitável, o mesmo acontecendo com a estrada para Setúbal: os Bombeiros regressam a Sesimbra, onde Joaquim Pedro Gomes acabará por falecer.

Passada a fúria do tempo, os Bombeiros procuram por pescadores desaparecidos, encontrando então o corpo de Emílio Gonçalves Correia, sob os escombros da marginal, junto à Sociedade Musical Sesimbrense.

O relatório termina referindo os nomes dos bombeiros que, sob o comando de Mesquita Lopes, participaram nas operações: José António Preto Júnior, João Rodrigues Costa Júnior, José dos Santos, Manuel Rapaz Perneco, Manuel Mendes, João Marques da Encarnação, Evaristo Pereira, Herculano Santos Formiga, Franck Fernando Westerman, Joaquim António Pinto Júnior, José dos Santos Formiga, Ponciano dos Santos e Domingos Laureano. Mais uma vez fora honrada a divisa dos Bombeiros Voluntários de Sesimbra: “Humanitas, vita nostra tua est”.

Rafael Monteiro

Imediatamente após o ciclone, que atingiu todo o País, a comissão de socorro criada pelo governo pediu às Câmaras Municipais para elaborarem relatórios de avaliação dos prejuízos. Em Sesimbra essa tarefa foi entregue a Rafael Monteiro, então com apenas 19 anos, mas que já era o dirigente da Mocidade Portuguesa local (Ala 13). Com a ajuda de outros jovens da MP, entre os quais Eduardo Pereira, fizeram o relatório dos prejuízos, tanto na vila como no campo, num tempo recorde: 4 dias! A Delegação Marítima, que aproveitou os dados recolhidos por Rafael Monteiro, levaria um mês para entregar o seu próprio relatório.

O documento de Rafael Monteiro destacou-se não só pela rapidez, como pela sua qualidade. Por exemplo: toda a frota desaparecida ou danificada foi identificada pelo nome dos proprietários, pelo nome e tipo de barco e respectivas dimensões lineares e tonelagem (ver imagem abaixo).
Pormenor do relatório elaborado por Rafael Monteiro.

Este minucioso trabalho permitiu apurar um número que, mais do que a quantidade de barcos sinistrados, revela o impacto do ciclone na capacidade de pesca local: ocorreu a perda total de mais de 65% da tonelagem da frota. O Presidente da Câmara, Major Preto Chagas, achou que seria justo recompensar monetariamente Rafael Monteiro, tanto mais que tinha tido despesas com as deslocações à zona rural; porém, a reacção do jovem sesimbrão, denotando um elevado sentido de serviço público, mas também alguma da frontalidade que sempre o caracterizou, foi de recusa, retorquindo: “Na Mocidade Portuguesa aprendi a servir, e não a servir-me”. Mas, passados quatro anos, lamentar-se-ia n’O Sesimbrense: “nunca soubemos que alguém se houvesse referido à acção valiosa dos rapazes da Mocidade de Sesimbra”.

Rafael não estava a procurar louros para si próprio, pois o artigo onde se encontra este desabafo foi assinado apenas por “Um Sesimbrense”. Nesse artigo revelou a natureza desse trabalho extraordinário: “Foi necessário avaliar, in loco, todas as destruições; elaborar enormes ficheiros; catalogar nomes; riscar dezenas e dezenas de mapas; percorrer todo o concelho indagando dos males e do seu remédio. E tudo se fez silenciosamente, disciplinadamente, com confiança cega nos destinos da nossa terra”.
O Ciclone provocou grandes estragos na Esplanada do Atlântico, bem visíveis na foto, embora já limpa da maior parte dos entulhos e destroços.

Duques de Palmela

Durante o atribulado início do século XX em Sesimbra, os Duques de Palmela destacaram-se pelas acções de solidariedade para a sua população, suportando várias vezes a sopa dos pobres, em períodos de crise piscatória, ou fornecendo madeiras para a construção de modestas habitações. Idêntica atitude ocorreu após o grande ciclone, oferecendo madeiras das suas matas para a reconstrução da frota de pesca sesimbrense e outros fins.

Também neste caso os sesimbrenses souberam agradecer à Casa de Calhariz, declarando solenemente o Duque D. Domingos como “Benemérito de Sesimbra” e descerrando uma placa no largo existente no lado sul da Igreja de Santiago, o qual, já então tinha o nome dos Duques de Palmela. Esta designação viria a ser retirada após a revolução de 1974, numa acção muito polémica, dado que nunca aquela família tinha prejudicado Sesimbra através de qualquer ligação ao regime - pelo contrário, quando Pedro Holstein Beck foi presidente da Câmara, conseguiu financiamento para um novo bairro habitacional, ultrapassando as dificuldades que já então se começavam a sentir nas relações entre Sesimbra e Henrique Tenreiro.

Um fotógrafo sesimbrense

Se hoje possuímos fotografias do Ciclone de 1941 em Sesimbra, devemo-lo ao sesimbrense João Baptista Gouveia (Jojó), que retratou os efeitos da tempestade. São dele as fotos aqui reproduzidas, com excepção do discurso de José Francisco Viola, fotografia cedida pela família.

João Augusto Aldeia


[Publicado originalmente n'O Sesimbrense, n.º 1146, de 31 de Janeiro de 2011]