terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

As duas Sesimbras

 

Ainda hoje encontramos, em publicações oficiais, a história da vila de Sesimbra contada do seguinte modo: a povoação existiu primeiro no alto de um monte, rodeada de muralhas, e a certa altura, por volta do século 16, a população desceu a encosta e passou a viver junto ao mar.

No entanto, são muitos os indícios de que esta história está "mal contada". O que ocorreu é que, durante os primeiros séculos da nacionalidade, coexistiram duas vilas: a Sesimbra oficial, onde se localizavam as instituições (alcaidaria, paróquia...), no alto da encosta, cuja principal razão de ser era a defesa do Reino, e a Sesimbra dos pescadores, junto à praia, cuja força motriz era a actividade económica da pesca.

O castelo de Sesimbra não foi construído para defesa duma população que residisse naquele morro, mas sim numa lógica de defesa do território conquistado pelos cristãos. A sua baía constitui um fácil ponto de acesso, por exemplo, para forças atacantes que visassem a península da Arrábida, ou Lisboa. O castelo era também um excelente ponto de observação sobre o mar. Num documento de 1366, el-rei D. Pedro I refere-se ao castelo de Sesimbra como sendo:

  "uma das boas fortalezas que no meu reino havia pelo qual lugar se guarda a minha terra dos inimigos que andam pelo mar desde o cabo de São Vicente até Galiza, pelas marinas, por velas e atalaias e sinais certos que entre si fazem e hão-de fazer". [1]

De facto, a história da Sesimbra acastelada está repleta de incentivos reais para o seu povoamento, desde o seu início, até que finalmente as autoridades se renderam às evidências: a população não encontrava motivos para ali residir. A força de Sesimbra estava na pesca e na navegação, e não fazia sentido residir no Castelo para quem se ocupava destas actividades.

Logo após a reconquista de Sesimbra, por volta de 1200, D. Sancho I entrega as terras reconquistadas a colonos Francos [ou seja, oriundos do norte da Europa]. Numa carta que escreveu de Coimbra, em 26 de Março de 1199, ao Alcaide mor, alvazis e homens bons de Santarém, Lisboa, Alenquer e outros, informa-os de que tinham chegado Francos em utilidade do mesmo Rei, de seus filhos e reino, a povoar a terra; a uma parte dos quais ele Rei limitava Cezimbra, a outros Alezizas com seus termos.

O primeiro Foral de Sesimbra, outorgado pelo mesmo rei, é dirigido "aos povoadores de Sesimbra, presentes e futuros", ou seja, era evidente a necessidade de povoar a terra. No entanto, passados poucos anos, em 1236, esta decisão de entrega de Sesimbra aos Francos é revertida, fazendo-se agora entrega à Ordem de Santiago – nesse tempo, ainda uma organização espanhola (leonesa). Teria falhado o povoamento pelos Francos?

Em 1252, uma Bula do papa Inocêncio IV, refere que igreja de Santa Maria (do Castelo) auferia rendimentos provenientes do mar . E desde 1255, a Ordem de Santiago dispunha, também por doação régia, dos direitos de pescaria em Sesimbra, juntamente com os de Almada, Alcácer do Sal e Setúbal: indícios seguros da existência de actividade piscatória em Sesimbra, com importância suficiente para ser referida em documentos oficiais. Este facto é reforçado com a existência, já em 1282, de alcaide do mar em Sesimbra, com jurisdição sobre homens do mar e residentes na póvoa e com alguma tradição no exercício do cargo. E estes pescadores certamente não residiam no Castelo, onde quaisquer conflitos poderiam ser derimidos pelo respectivo alcaide.

No documento de 1255, o rei ressalva os seus direitos sobre os pescadores supervenientes, ou seja, os que não moram permanentemente nos domínios da Ordem. Faz prometer aos cavaleiros de Santiago que lhes deixarão vender e comprar o peixe que quiserem, usar a água , a madeira e lugares para guardarem o peixe e para tecerem e repararem as redes, ou mesmo para fazerem cabanas onde possam morar temporariamente, se for preciso. Além disso, se fizerem algum mal, seriam julgados pelo foro da terra e não como forasteiros. [2]

Todos este documentos atestam uma importante actividade piscatória, não só por pescadores locais, mas também vindos de fora (presumivelmente, de Lisboa), e é o potencial de conflito decorrente desta intensa actividade que justifica a posterior criação do cargo do alcaide do mar.

Obviamente que a existência do alcaide e guarnição militar, das instâncias judiciais, da paróquia, e de equipamentos, tais como forno ou lagar da Ordem – cuja preocupação principal seria a da cobrança dos rendimentos que lhe eram devidos – proporcionou a existência de alguma vida urbana dentro das muralhas do Castelo, e esta Sesimbra altaneira sustentou-se durante algum tempo.
Sesimbra em 1560-1570: já uma vila bem desenvolvida.


Mas, no século 15, voltaram os reis a tomar novas medidas para tentar atrair gente que residisse no Castelo. Em 1425, a vila encontrava-se despovoada e pobre. As propriedades da albergaria do Espírito Santo não rendiam sequer o suficiente para garantir a assistência a pobres e peregrinos. No final de 1492, a concessão de privilégios aos moradores da cerca já não travou o declínio do povoado, e quatro anos decorridos, passou a couto de homiziados, ou seja, território onde se podiam abrigar os culpados de certos crimes: mais uma tentativa de atrair população, mas que também não surtiu efeito. [3].

Entretanto, a Sesimbra junto ao mar, prosperava. A capela do Espírito Santo dos Mareantes é do século 15, e a capela de S. Sebastião é possivelmente anterior. A planta mais antiga de Sesimbra, datada de 1560-1570, mostra uma vila já muito desenvolvida: e estávamos no século 16, seria impossível ter sido construída em poucos anos. Portanto não faz sentido continuar a afirmar que "no início do século XVI os habitantes se deslocaram para o vale junto do mar, dando origem a um novo núcleo populacional no local da actual vila". Não era um "novo núcleo populacional", mas sim uma antiga vila de pescadores. Já em 1471 D. Afonso V autorizara os arrais, mareantes e vizinhos da Ribeira a terem carniceiro, obrigado a fornecer-lhes carne em abastança todo o ano. [3]

Estando as instituições oficiais no Castelo – e essas é que se deslocaram para a vila ribeirinha no século 16 – é apenas à Sesimbra acastelada que se referem os documentos oficiais, durante os primeiros séculos da nacionalidade. Mas isso não retira importância ao povoamento junto ao mar, e ainda que fosse constituído por meras cabanas, a verdade é que as casas da maioria dos pescadores, em Portugal, sempre foram pobres, mesmo até ao século 20.

João Augusto Aldeia

[1] Tombo da vila de Sesimbra
[2] Gomes, Sandra Gomes, Sandra Rute Fonseca (2011) Territórios Medievais do Pescado do Reino de Portugal
[3] Oliveira, José Augusto da Cunha Freitas de (2004) Sesimbra nos finais da Idade Média: contrastes do território e exploração dos recursos, ed. Câmara Municipal de Guimarães (separata de Actas do III Congresso Histórico de Guimarães, D. Manuel e a sua época, 27 a 28 de Outubro de 2001, vol. III)