sábado, 23 de janeiro de 2016

   Sesimbrenses ilustres
Marcos Vaz Preto,
o Padre Marcos (1782-1851)

Foi o sacerdote sesimbrense mais destacado, e também o político mais influente dos que nasceram nas piscosa Sesimbra. Participou activamente na grande mudança civilizacional que transportou Portugal do Antigo Regime até ao Liberalismo. No entanto, é praticamente desconhecido dos sesimbrenses

Marcos Pinto Soares Vaz Preto nasceu em Sesimbra, filho de Marcos Pinto, proprietário de uma armação de pesca, e de Maria Soares. Seguiu a carreira eclesiástica, ingressando na Ordem de Santiago, e foi ordenado Padre, tendo tido responsabilidade nas paróquias de Alhos Vedros e da Penha (Lisboa).

Aderiu ainda jovem aos ideais liberais: quando, em 1808, circularam clandestinamente em Sesimbra publicações imbuídas do pensamento Liberal, o Juíz de Fora comunicou ao Intendente a suspeita de que a autoria seria do Padre Marcos, conhecido aderente ao "partido francês".

Quando se deu a revolução Liberal e se organizaram as primeiras eleições universais em Portugal, em 10 de Dezembro de 1820, o Padre Marcos dirigia a paróquia de Alhos Vedros, e coube-lhe fazer uma Oração aos eleitores que se reuniram nesse dia. Publicada pouco tempo depois, essa Oração tornou-se num documento de referência do Liberalismo, contribuindo igualmente para a fama do sacerdote sesimbrense.

Após a promulgação da Constituição de 1822, o Padre Marcos foi nomeado para uma comissão encarregue de reformar as Ordens Seculares, mas a oposição da Igreja, e o golpe contra-revolucionário da Vilafrancada impediram essa reforma. Visto pelo novo poder como um traidor, foi desterrado, em 1823, para Mesão Frio, acabando por ter de abandonar o País, em direcção à Inglaterra, após a aclamação de D. Miguel. Ali dirigiu os jornais “Português Emigrado” e “Paquete de Portugal”, de apoio aos Liberais. Juntou-se depois às forças que vieram combater o absolutismo. Foi na viagem para os Açores que Marcos Vaz Preto conheceu D. Pedro, de quem se tornaria amigo e confessor – tal como de D. Maria, a quem votaria uma estreita fidelidade política.

Acompanhando os liberais portugueses na reconquista do poder, foi ele que celebrou a missa campal que antecedeu o embarque para o Mindelo, e seria ele próprio um dos seus "bravos". Durante o cerco do Porto, trabalhou na organização do socorro médico aos feridos e no abastecimento dos víveres.

Já com o Liberalismo restabelecido em Portugal, Marcos Vaz Preto dirigiu a reforma da Igreja portuguesa. Foi ainda nomeado Vigário-Geral do Patriarcado e Arcebispo de Lacedemónia.

Após a Revolução de Setembro de 1836, como defensor da rainha D. Maria II e da Carta Constitucional, acabaria por ser preso, demitindo-se então de todos os seus cargos, excepto o de Esmoler Mor. Mas acabaria por ser eleito para o Parlamento, onde esteve de 1834 até 1851, participando activamente em importantes debates, tendo pertencido a diversas comissões parlamentares: a Eclesiástica, a de Instrução Pública, e a de Redacção do Diário da Câmara.

O Padre Marcos pertenceu à Maçonaria, actividade de que pouco se conhece, sabendo-se que foi um dos fundadores da Grande Loja Provincial de Portugal Livre e Aceito, ramo irlandês, que dirigiu entre 1842 e 1851.

É reconhecido que Marcos Vaz Preto, quer pela sua influência junto da opinião pública, quer pelas funções religiosas e parlamentares, quer ainda pela influência directa junto da elite governante, teve um poder enorme no estabelecimento do Libera-lismo em Portugal, participando directamente em muitas das reformas que moldaram o novo regime. O seu papel na transformação da Igreja, aliado ao facto ao facto de despachar sobre muitas matéria que normalmente caberiam ao Papa, levaram alguns a dizer, com ironia, que era ele o Papa em Portugal: "Marcum Papam Habemos".



"Escolhei o mais virtuoso, o mais justo, o mais honrado, o mais sábio, o melhor de entre vós"
No dia 10 de Dezembro de 1820 realizou-se o primeiro acto eleitoral de sempre em Portugal, em que toda a população foi chamada a votar. Foi uma eleição indirecta para um Parlamento Constituinte. Para maior solenidade dessa eleição determinou-se que os párocos deveriam fazer uma Oração alusiva, explicando aos paroquianos os motivos da eleição e o modo como ela deveria decorrer.

O Padre Marcos, há muito tempo aderente às novas ideias Liberais, produziu um notável discurso, explicando porque é que um novo regime era necessário, para melhor governo do País. Criticando o regime em que a classe governativa vinha apenas da Nobreza, o Padre Marcos explica as circunstâncias que os esses "Grandes" deixaram de representar seus ilustres avoengos, pela "ignorância dos deveres sociais".

"Quando a Pátria corre risco, perigam, e estão arriscadas, todas as classes de que ela se compõe (…) Os direitos de uma justa liberdade quebrados, e ofendidos, a honra violada os recursos exaustos…". Era assim que o prelado caracterizava as consequências do regime absolutista sobre a vida das pessoas, verberando também os governantes que, "com a mira nas honras, Benefícios e Dignidades, sem vocação, por comodidade e modo de vida, são os primeira a golpear a Fé de Nosso Senhor Jesus Cristo."

Na sua descrição dos males que afligiam o País, o padre Marcos cita Sesimbra: referindo-se a "certa povoação pescadora, que é minha Pátria particular, onde a pesca chegou a pagar setenta por cento, e cobrados com tal, e tão bárbara tirania pelos emissários e membros do vil despotismo, que a reduziu ao mísero estado de abatimento e desgraça em que hoje se acha, e que precisa muitos anos para levantar-se."

Marcos Vaz Preto empolga os seus paroquianos com o apelo: "Recobrai, Portugueses, a coragem, valor e energia que formam o vosso carácter", apontando-lhe o objectivo da eleição: "Queremos uma Constituição que seja nossa, adequada aos nossos usos, conforme a nossos costumes, que nos torne felizes fazendo reviver o Comércio, a Agricultura, e as Artes, e que patrocine as Letras, conservando cada Cidadão na posse pacífica dos seus bens, e os direitos de uma justa liberdade."

Uma Constituição que, "formada sobre os princípios da Lei natural, conserve a Santa Religião de Jesus Cristo na sua pureza." Mais especificamente, era necessário criar condições para "que floresça a Agricultura como o primeiro, o mais nobre, o mais subtil emprego, o mais digno do homem social", e "que se reparem as fábricas, que os capitalistas da Nação sejam obrigados a promover por elas o bem de tantas povoações, hoje quase desertas".

Referindo-se às capacidades dos mais humildes, Marcos Vaz Preto propõe "que se aproveitem os talentos, e engenhos onde aparecerem, que a Pátria lance mão destes brilhantes mais estimáveis que as pedras preciosas, o ouro e a prata”. Tratava-se de talentos que tanto podiam aparecer “nas margens do mar, debaixo das rústicas choupanas", como "nas populosas cidades."

Porém, preocupado com as deturpações que, ainda hoje, prejudicam as eleições, faz votos "para que o espírito do Senhor se digne dirigi-las, para que o suborno, o espírito de partido e intriga as não contamine, e perverta."

Num aviso especial aos eleitores, proclama: "Que a paixão vos não domine, que o amor vos não cegue, que o ódio vos não iluda. Escolhei o melhor!"



"Devo justiça e gratidão aos Pescadores"

Em Maio de 1843 discutia-se no Parlamento a forma que deveria tomar o imposto sobre a pesca, havendo mesmo quem defendesse que os pescadores não deviam sequer pagar imposto. No meio dessa acesa discussão o Padre Marcos faz uma longa intervenção: “Devo justiça e gratidão à Classe em que nasci”, diz, referindo-se às suas origens. ”Meus pais viviam na abundância, e a sua fortuna era um estabelecimento grande de pesca; grandes armazéns cheios de todos os apetrechos necessários à pesca; muitos barcos; uma companha de perto de 100 homens; uma armação grande era propriedade sua.”

E qacrescenta: "Eu amo esta Classe; sou amigo dela; nunca neguei que lhe pertenci; só o crime é que faz vergonha; o homem que vive do trabalho, que não é ocioso, é sempre um ente responsável."

O Padre Marcos respondia assim a acusações que lhe estavam a ser feitas por outros deputados, de que teria voltado as costas à classe dos pescadores, ao defender uma determinada forma de imposto sobre a pesca. O sacerdote sesimbrense também contrariou uma proposta para que fosse estabelecida uma licença individual para pescar, à semelhança da licença para caçar: "Quanto às licenças para pescar, não as admito. Matrículas sim. Quero que haja liberdade de pesca em toda a extensão da palavra; licença para caçar, entendo que é preciso, porque é necessário usar de armas defesas por Lei, e convém ver a quem elas se concedem; mas os instrumentos necessários para se pescar são muito inocentes, não é necessário licença."

Outro assunto de actualidade que aborda é o do prejuízo provocado pelas redes de arrasto: "A rede de arrastar traz o pasto do outro peixe, o musgo, o limo, o marisco pequeno, o golfão, e os cardumes de arribação fogem das costas, porque estão varridas por redes de arrastar."

Também os abusos dos cobradores do imposto merecem a atenção do Padre Marcos: "Os pescadores tremem do inexorável gancho dos Fiscais, que recebem o tributo em género. O gancho atira sempre ao maior e melhor peixe, e deixa aos pescadores o pequeno." E exemplifica como actuavam os fiscais: "Pescavam os pescadores, por exemplo, 10 corvinas. Uma era do dízimo, outra dos direitos reais, uma da saída da Foz, uma da imposição e vinténs do mar, uma de cestearia, uma de vendagem: ficavam quatro!" – ou seja, desta forma o imposto atingia a astronómica percentagem de 60%!


Nota: Este texto é um resumo da conferência dada no dia 2 de Abril de 2012, no Clube Sesimbrense, integrada nas comemorações do 159º aniversário daquela colectividade.

João Augusto Aldeia


Bibliografia:
CARROMEU, Francisco, "O romantismo político do padre Marcos (1820-1851)"
CARROMEU, Francisco (2013) "Arcebispo e Maçon – O Padre Marcos na reforma liberal do estado e da Igreja (1820-51)”, ed. Colibri
LOUREIRO, Carlos H. G., "O Padre Marcos e o Liberalismo"
SORIANO, Luz, “História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal”
Actas da Câmara dos Senhores Deputados
Gravura do Padre Marcos, da Biblioteca Nacional: link

[ Publicado originalmente n'O Sesimbrense n.º 1160 de 30 de Março de 2012 ]