quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

1$00 por um peixe espada!

Ramada Crespo

 
Já pensaste, banhista amigo, no trabalho que dá a pescar o peixe espada ou a «viúva» que tu mercas por um mísero escudo, para almoçares ou jantares?

Tu sabes lá os perigos que os pobres pescadores passam para apanharem nos seus aparelhos. esses peixes que fazem a tua delícia e a de tua família ?

Não sabes, não. E como não sabes nem avalias nós vamos narrar, sucintamente, a árdua tarefa da pesca do alto, a sua engrenagem curiosa, para que faças uma ideia aproximada de quanto custa a esses mourejadores ganhar um pouco de pão. Ouve, pois:

À hora em que te recolhes a casa, a fim de te entregares aos acolhedores braços de Morfeu, já pelas ruas os «moços» dos barcos do alto fazem ouvir o seu grito característico, chamando para a lida os «camaradas»

– Ó ti’Tóóóónio – brada o pequeno moço, enchendo os pulmões de ar, para que o seu grito se ouça bem.

– Já ouvi; repaz – responde o «camarada», saindo do seu sono de uma ou duas horas.

E, decorridos poucos minutos, o «camarada» aí vai caminho da «loja de companha», saco com pequena refeição preparada, a qual muitas vezes se resume a um pouco de pão seco e de um decilitro de vinho. Tudo a postos, motores a roncarem, a barca, com seus 12 a 14 tripulantes, dirige-se à armação no intuito de «meter isca».

Se a armação apanhar peixe miúdo – sardinha ou carapau – o arrais da barca compra-lhe certa porção e faz-se ao mar alto em cata de pescado graúdo.

O mar fica longe, a umas 4 horas de caminho da costa, e esse tempo é empregado a «iscar» o aparelho, operação que consiste em colocar uma sardinha ou um carapau em cada anzol.

À medida que se vai aproximando do local da pesca, o mar vai também mudando de aspecto. Ondas alterosas, vagalhões, ameaçadores, erguem-se na frente da frágil embarcação, cujo arrais manobra o leme com perícia, evitando o embate das vagas.

Quem vê a quietude das águas na baía, não pode avaliar o que tem de perigoso e de falso esse mar a algumas milhas da costa. Arrepia, causa calafrios na espinha. Mas eles, esses pescadores afeitos ao perigo, vão vencendo os obstáculos e chegam finalmente ao seu ponto de mira.

Lançada a sonda com umas tantas braças de corda – calamento soe chamar-se na pesca – e verificado estar em cima do mar, os aparelhos são atirados à água, operação que requer conhecimentos, perícia e paciência.

Cada anzol tem a defendê-lo dos dentes do peixe uns centímetros de arame e só depois leva o cordel chamado «estrovo».

Para os aguentar a uma certa profundidade são presos e em séries a umas pedras, a que se dão o nome de «peões», ficando a flutuar as «boias», pequenas cabaças hermeticamente vedadas, que se distanciam uns metros.

Aparelhos na água, os «camaradas» descansam um pouco, uns dormindo um nadinho, outros, comendo o almoço.

À voz do arrais os aparelhos são içados, tirando-se-lhes o peixe – quando o traz – e prendendo-se os anzóis a pequenos pedaços de cana, de feitio especial, formando as «talas».

Tudo pronto, regressa a barca à costa – mais quatro horas a caminho.

E tu, banhista amigo, que estás na praia aproveitando as carícias dos últimos raios de sol, a vês chegar.

O resto da tarde e as primeiras horas da noite são empregados no amanho dos aparelhos, para daí a pouco voltar ao mar.

Mas isto é de verão.

E de inverno, quando o vento sul ruge furiosamente e a rebentação é de assombrar? Oh! de inverno! Mil vezes esses heróis vêm em frente dos olhos a morte e mil vezes a vencem.

Ocasiões há em que saem sob temporal medonho, confiados na segurança dos motores ou no vigor dos seus braços, só porque em casa nesse dia não há pão e porque já não o houvera na véspera. Os filhos choram com fome e é preciso arranjar-lhes de comer.

E quando eles partem, ficam em terra as esposas, as mães, com o coração amarfanhado, em constante sobressalto, sempre à espera que lhes venham dizer que eles ficaram para todo o sempre sepultados no fundo desse mar tão amigo e tão traiçoeiro.

Mas se eles vencem a fúria dos elementos e chegam à vista de terra, os olhos dos que os vêm chegar assistem aos esforços formidáveis desses homens procurando tocar na praia. O mar varre a embarcação de proa à popa e por mais de uma vez ela desaparece nas vagas, para surgir uns metros além. Montanhas de águas impedem o regresso à praia e, então, vale-lhes essa pequena enseada a que por ironia se chama pomposamente Porto de Abrigo.

A esse pequeno molhe deve a classe piscatória o poder exercer a sua trabalhosa faina em dias terríveis, salvando muitas centenas de vidas.

Curiosa a maneira como são feitas as contas de companha.

Do lanço é tirada a despesa de gasolina, óleo, iscadura, direitos, vendagem, aluguer da loja, embarcação e mil e uma coisas várias, repartindo-se depois o remanescente pelos camaradas, em processo socialista. E tiram também determinada quantia, chamada parte de aparelho, que junto às que anterior e posteriormente se tiram e que se destinam à compra de aparelhos novos para substituírem os que acusam excesso de uso, ou para suprirem as faltas dos que a aguagem (correntes) faz perecer.

O «camarada» ganha em média, por cada mil escudos de pescado, vinte escudos de parte, além da pequena quantia denominada parte de vinho que ele reserva para vinho ou tabaco.

Já vês, banhista amigo, que é preciso a barca apanhar um conto de réis de pescado, para o pobre trabalhador do mar, que emprega uma noite e um dia de actividade constante, ganhar vinte escudos.

Mas isso poucas vezes sucede.

E, quando a barca vai ao mar, os homens trabalham como sempre e a pescaria é irrisória ou nenhuma, como se verifica semanas seguidas?

A despesa é quase igual à dos dias da fartura e o ganho passa a ser – como dizem esses desventurados – vinte mil réis empenhados.

Já se tem visto e é até corrente algumas barcas apanharem durante a semana quatro a cinco mil escudos de pescado e, ao fazer contas, caber a cada camarada trinta a quarenta escudos somente. É preciso pagar os empenhos anteriores, porque o pescador sesimbrense é honesto e tem por norma pagar a quem deve, já por temperamento, já porque, o não fazendo, não tem quem lhe fie o material para a próxima etapa piscatória.

E agora, banhista amigo, que já sabes quanto custa apanhar um peixe espada ou uma «viúva», e que estás ao facto dos perigos por que passam os pescadores, não regateies o seu valor quando na praia pretenderes comprar o peixe que fará a tua delícia e a de tua família.

E se desfrutais de influência nos meios oficiais, fazei quanto possas para que um autêntico Porto de Abrigo substitua em breve o desmantelado paredão que ostenta esse pomposo nome. Os pescadores sesimbrenses e toda a Piscosa de Camões te saberão agradecer.

Texto escrito por João Pereira Ramada Crespo
Publicado originalmente n’O Sesimbrense n.º 527, de 30 de Agosto de 1936

Viúva — chaputa (por causa da sua cor escura)
Companha — conjunto de camaradas que formam uma equipa de pesca associada a uma embarcação
Moço — categoria inicial da progressão na carreira de pescador, atribuída a menores; também designados como moços chamadores

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

As duas Sesimbras

 

Ainda hoje encontramos, em publicações oficiais, a história da vila de Sesimbra contada do seguinte modo: a povoação existiu primeiro no alto de um monte, rodeada de muralhas, e a certa altura, por volta do século 16, a população desceu a encosta e passou a viver junto ao mar.

No entanto, são muitos os indícios de que esta história está "mal contada". O que ocorreu é que, durante os primeiros séculos da nacionalidade, coexistiram duas vilas: a Sesimbra oficial, onde se localizavam as instituições (alcaidaria, paróquia...), no alto da encosta, cuja principal razão de ser era a defesa do Reino, e a Sesimbra dos pescadores, junto à praia, cuja força motriz era a actividade económica da pesca.

O castelo de Sesimbra não foi construído para defesa duma população que residisse naquele morro, mas sim numa lógica de defesa do território conquistado pelos cristãos. A sua baía constitui um fácil ponto de acesso, por exemplo, para forças atacantes que visassem a península da Arrábida, ou Lisboa. O castelo era também um excelente ponto de observação sobre o mar. Num documento de 1366, el-rei D. Pedro I refere-se ao castelo de Sesimbra como sendo:

  "uma das boas fortalezas que no meu reino havia pelo qual lugar se guarda a minha terra dos inimigos que andam pelo mar desde o cabo de São Vicente até Galiza, pelas marinas, por velas e atalaias e sinais certos que entre si fazem e hão-de fazer". [1]

De facto, a história da Sesimbra acastelada está repleta de incentivos reais para o seu povoamento, desde o seu início, até que finalmente as autoridades se renderam às evidências: a população não encontrava motivos para ali residir. A força de Sesimbra estava na pesca e na navegação, e não fazia sentido residir no Castelo para quem se ocupava destas actividades.

Logo após a reconquista de Sesimbra, por volta de 1200, D. Sancho I entrega as terras reconquistadas a colonos Francos [ou seja, oriundos do norte da Europa]. Numa carta que escreveu de Coimbra, em 26 de Março de 1199, ao Alcaide mor, alvazis e homens bons de Santarém, Lisboa, Alenquer e outros, informa-os de que tinham chegado Francos em utilidade do mesmo Rei, de seus filhos e reino, a povoar a terra; a uma parte dos quais ele Rei limitava Cezimbra, a outros Alezizas com seus termos.

O primeiro Foral de Sesimbra, outorgado pelo mesmo rei, é dirigido "aos povoadores de Sesimbra, presentes e futuros", ou seja, era evidente a necessidade de povoar a terra. No entanto, passados poucos anos, em 1236, esta decisão de entrega de Sesimbra aos Francos é revertida, fazendo-se agora entrega à Ordem de Santiago – nesse tempo, ainda uma organização espanhola (leonesa). Teria falhado o povoamento pelos Francos?

Em 1252, uma Bula do papa Inocêncio IV, refere que igreja de Santa Maria (do Castelo) auferia rendimentos provenientes do mar . E desde 1255, a Ordem de Santiago dispunha, também por doação régia, dos direitos de pescaria em Sesimbra, juntamente com os de Almada, Alcácer do Sal e Setúbal: indícios seguros da existência de actividade piscatória em Sesimbra, com importância suficiente para ser referida em documentos oficiais. Este facto é reforçado com a existência, já em 1282, de alcaide do mar em Sesimbra, com jurisdição sobre homens do mar e residentes na póvoa e com alguma tradição no exercício do cargo. E estes pescadores certamente não residiam no Castelo, onde quaisquer conflitos poderiam ser derimidos pelo respectivo alcaide.

No documento de 1255, o rei ressalva os seus direitos sobre os pescadores supervenientes, ou seja, os que não moram permanentemente nos domínios da Ordem. Faz prometer aos cavaleiros de Santiago que lhes deixarão vender e comprar o peixe que quiserem, usar a água , a madeira e lugares para guardarem o peixe e para tecerem e repararem as redes, ou mesmo para fazerem cabanas onde possam morar temporariamente, se for preciso. Além disso, se fizerem algum mal, seriam julgados pelo foro da terra e não como forasteiros. [2]

Todos este documentos atestam uma importante actividade piscatória, não só por pescadores locais, mas também vindos de fora (presumivelmente, de Lisboa), e é o potencial de conflito decorrente desta intensa actividade que justifica a posterior criação do cargo do alcaide do mar.

Obviamente que a existência do alcaide e guarnição militar, das instâncias judiciais, da paróquia, e de equipamentos, tais como forno ou lagar da Ordem – cuja preocupação principal seria a da cobrança dos rendimentos que lhe eram devidos – proporcionou a existência de alguma vida urbana dentro das muralhas do Castelo, e esta Sesimbra altaneira sustentou-se durante algum tempo.
Sesimbra em 1560-1570: já uma vila bem desenvolvida.


Mas, no século 15, voltaram os reis a tomar novas medidas para tentar atrair gente que residisse no Castelo. Em 1425, a vila encontrava-se despovoada e pobre. As propriedades da albergaria do Espírito Santo não rendiam sequer o suficiente para garantir a assistência a pobres e peregrinos. No final de 1492, a concessão de privilégios aos moradores da cerca já não travou o declínio do povoado, e quatro anos decorridos, passou a couto de homiziados, ou seja, território onde se podiam abrigar os culpados de certos crimes: mais uma tentativa de atrair população, mas que também não surtiu efeito. [3].

Entretanto, a Sesimbra junto ao mar, prosperava. A capela do Espírito Santo dos Mareantes é do século 15, e a capela de S. Sebastião é possivelmente anterior. A planta mais antiga de Sesimbra, datada de 1560-1570, mostra uma vila já muito desenvolvida: e estávamos no século 16, seria impossível ter sido construída em poucos anos. Portanto não faz sentido continuar a afirmar que "no início do século XVI os habitantes se deslocaram para o vale junto do mar, dando origem a um novo núcleo populacional no local da actual vila". Não era um "novo núcleo populacional", mas sim uma antiga vila de pescadores. Já em 1471 D. Afonso V autorizara os arrais, mareantes e vizinhos da Ribeira a terem carniceiro, obrigado a fornecer-lhes carne em abastança todo o ano. [3]

Estando as instituições oficiais no Castelo – e essas é que se deslocaram para a vila ribeirinha no século 16 – é apenas à Sesimbra acastelada que se referem os documentos oficiais, durante os primeiros séculos da nacionalidade. Mas isso não retira importância ao povoamento junto ao mar, e ainda que fosse constituído por meras cabanas, a verdade é que as casas da maioria dos pescadores, em Portugal, sempre foram pobres, mesmo até ao século 20.

João Augusto Aldeia

[1] Tombo da vila de Sesimbra
[2] Gomes, Sandra Gomes, Sandra Rute Fonseca (2011) Territórios Medievais do Pescado do Reino de Portugal
[3] Oliveira, José Augusto da Cunha Freitas de (2004) Sesimbra nos finais da Idade Média: contrastes do território e exploração dos recursos, ed. Câmara Municipal de Guimarães (separata de Actas do III Congresso Histórico de Guimarães, D. Manuel e a sua época, 27 a 28 de Outubro de 2001, vol. III)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Carnaval em Sesimbra em tempos distantes

 
Outrora o Carnaval em nossa terra era extremamente animado, e de tais atrativos que a ausente mocidade conterrânea, como a de terras vizinhas tudo deixava para aqui vir passar algumas horas alegre Os bailes de máscaras nas Sociedades eram de maior animação ainda que actualmente, enchendo-se por completo os dois vastos Salões a tal ponto que só depois da meia noite se podia dançar!

Afora enorme número de mascaradas estranhas às colectividades, todas as famílias de sócios, naquelas noites ali concorriam, havendo esposas que durante o resto do ano nem mesmo a boas Récitas iam, mas não faltavam àqueles bailes, deixando os filhitos ao cuidado dos avós, pois, coitadas, também tinham direito a ter umas noites de franca risota e alegria Às vezes lá sibilava, proveniente de atrevidas máscaras, qualquer piadita que fazia corar os castos maridos, porem, era Carnaval e os efeitos tornavam-se nulos.

Pelas Sociedades desfilavam centenas de mascarados envergando elegantes costumes e custosos vestidos, a par de vestes antiquíssimas legadas pelas bisavós e de dezenas de travesti os mais variados Enfim supomos que poucas vilas teriam bailes marquês tão animados e concorridos!

E o que aparecia de dia cá fora merece ser lembrado, ora se admiravam as bem ensaiadas Danças e Mascaradas com grupo musical, ora se gargalhava ao ver-se os sem graça mais ou menos roxoados...

Para estes, como amável prova ele aplauso, nunca faltava a nossa típica Pardelada, de que nós temos o exclusivo, isto é, o arremesso de cabeças de cação, talos de couve, batatas podres e alguma pedrita…

Tal delicadeza estava tanto no hábito dos sesimbrenses que alguns mais circunspectos não podiam resistir à tentação de também enviar a sua pardeladinha.

E os foliões sobretudo os vestidos com serapilheiras a imitar os ursos, descontentar-se-iam se não fossem recebidos com tais carícias, o que lhes provaria não terem suas gracinhas merecido aplauso – As Mascaradas organizadas, essas poderiam, sem deslustre, ser exibidas em qualquer parte, tal era a sua perfeita apresentação! Viram-se coisas esplêndidas! Foram formosas as Danças ensaiadas pelo Jirica, um algarvio, funileiro e quarto clarinete da Música Velha. Se, como amador musical, nada se evidenciou, como dirigente de Danças musicadas foi altamente apreciado Também vimos marchando garbosamente pelas ruas uma Companhia, com corneteiro e fanfarra, de marinheiros de 9 a 13 anos, fardados e equipados de espadins e espingardas, – de madeira é claro – não faltando até, atrás da formação, a perfilada praça com a mochila da Ambulância!

As mães dos marinheiritos, a essas é que a principio nada lhes agradou a massada da confecção dos fardamentos para os filhos – boinas, calças compridas e camisolas brancas, com cabeção azul - porém quando os viram marchar impecável mente pelas ruas da vila, ao delirante estralejar de palmas e aplausos, todas elas se comoviam esquecendo os trabalhos passados… A Fanfarra era também constituída por rapazitos, à pressa ensinados por Miguel Santana que para eles compôs um Passacalle em que os dedos pouco tinham a fazer Quase todos, depois de adquiridos maiores conhecimentos, ingressaram na Música Nova.

Apareciam também grupos menos numerosos mascarados a preceito, e outros piadando com alusões a episódios do ano, passados não só na terra como na Capital - Igualmente se destacava um grupo de rapazes naqueles tempos, quási todos carpinteiros, que em vários anos se evidenciaram em coisas interessantes Duma vez nos lembramos ter visto em movimentos passados nas ruas, uma couve, um repolho, um nabo, uma cenoura e um rabanete, belos produto agrícolas com 3 a 4 metro de altura! E perfeitíssimos, tudo na devidas proporções! Uma beleza de hortaliça! Vejam, pois, que trabalho, que tempo roubado ao descanso nocturno e que despesas para se apresentar coisas tão perfeitas! E nada pediam! Nem sequer naqueles tempos se instituíam prémios pecuniários para o que melhor se apresentasse! Por esta narrativa se poderá fazer ideia do que era o Carnaval em Sesimbra, há meio século!

Mas ainda havia um outro Entrudo muito sesimbrão, aquele que começa em 22 de Janeiro e se prolonga às vezes por mais de 30 dias Esse era aproveitado – à parte mascaradelas noturnas às casas de pessoas amigas – para partidas algo fortes, levadas a efeito por rapazes já grandes como por exemplo, a grossa brincadeira do Badalo, que é mais um exclusivo da nossa terra, pois não nos consta que noutras estivesse em uso.

Somente para elucidação de algum curioso leitor de fora, diremos que tal coisa consta duma pedrinha com 4 ou 5 quilos de peso, envolvida em cordel enredado, ao qual se amara outro cordel bem comprido, por causa de se poder salvar as costelas, em caso de perigo. Depois prende-se a dita pedrinha à argola ou outra coisa aproveitável da porta de entrada da casa da vítima escolhida Tudo em ordem, os operadores põem-se a grande distância e vá de puxar o cordel comprido, que não mais largaram, e a porta vai sofrendo amolgadelas a compasso, como badaladas, o que faz acordar os moradores próximos, e ainda primeiro o paciente que de ordinário é escolhido entre os mais exaltados, daqueles que abrem a porta, não raramente armados, vociferando palavrões insultuosos e que correm a procurar os badaleiros que, a rir, nesse momento, já estão longe.

Esta partida grossa é feita sempre muito depois da meia-noite.

É um pouco arriscada e já tem dado lugar a consequências dolorosas. Contemos, das muitas de nosso conhecimento, uma trágico-cómica: No Largo das Camionetes, talvez onde hoje se vê a Latoaria Mira, habitava numa casa baixa, o tio João Grilo velho marítimo, inofensivo e bonacheirão.

Uns foliões, já barbados, preparam- lhe um badalo, e encostaram a uma das Acácias existentes no Largo, um boneco de palha.

Despertado pelos estrondos, tio João, saltando da cama conforme estava, e praguejando, abriu a porta, logo agarrando furiosamente um almofariz de pedra que servira de bebedoiro às galinhas, e correu sobre o boneco, atirando-lhe o pesado objecto à cabeça, o que o fez redondamente cair, para não mais, por si só, se erguer! Atónito e aterrado, tio João vai direito a casa, gritando à sua velhota – já levantada também – que estava desgraçado, que tinha morto um dos patifes e que ia fugir para bem longe, desaparecendo logo na direcção da Fonte Nova.

Gritos e grande alarido na vizinhança! Alguns mais animosos aproximaram-se do morto… e qual o seu espanto quando verificaram tratar-se dum boneco! Grandes gargalhadas já de cinquenta ou mais pessoa, não tardando que quase toda a população soube se do caso.

No entanto, alguns parentes, temendo suicídio, foram em busca do assassino, resultando baldado seus esforços. A pobre velhota, essa, coitada, é que não mais descansou nessa noite, mas ao romper do dia apareceu-lhe a tia Maria Cebola que, em segredo, lhe participou que o marido estava lá no Casalito, próximo ao Forte do Cavalo, e que ela mesmo seria portadora do que quisesse.

Grande alegria da chorosa velhota que logo se pôs a caminho, com o fato do marido, pois o desgraçado tinha fugido só com a camisola e ceroulas…

Zé Sesimbrão
Publicado originalmente n'O Sesimbrense
n.º 1.124 de 8 de Fevereiro de 1948

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Carnaval em Lisboa
Carnaval de outros tempos

O carnaval em tempos na Piscosa, era o divertimento que proporcionava à mocidade Sesimbrense alegre e irrequieta da época, umas noites bastante divertidas, assim como a folia mais apetecida por muitas damas recolhidas lá do burgo, que aguardavam ansiosamente essas noites para expandir em espirituosas e animadas conversações, toda a sua malícia... a coberto da máscara com que se apresentavam anonimamente nas Sociedades de Recreio, a ocultas muitas vezes dos maridos.

De dia os marítimos divertiam-se a seu modo pelas ruas, excentricamente vestidos, fumando de cachimbo, em forma de minúsculos navios embandeirados em arco. O velho gerica exibia em público bem organizadas danças que mais tarde o Farto quis imitar, com a célebre paródia à revolta do Brasil, em que ele representava garbosamente fardado, o papel de almirante Floriano Peixoto, tendo como ordenança o popular Cabo Elísio o mais leal dos seus compatrícios.

Os rapazes da terra e as formosas pequenas do tempo, tinham pelas três noites do entrudo, uma particular devoção... Herculano Pinto Soares, era de entre a nossa rapaziada, aquele que melhor se ajustava ao papel de mulher, para iludir nessas noites os amigos que se julgavam possuir o condão de adivinhar quem era esta ou aquela máscara mais engraçada ou melhor vestida, apresentando-se corretamente mascarado em traje feminino.

Baixo, de boa compleição física, pulsos roliços e sobretudo muito espirituoso, o Herculano sabia como nenhuma rapariga, conquistar rapidamente por este processo, o coração dos homens, impacientemente desejosos em descobrir quem seria aquele lindo rosto que uma simples máscara de pano verde ou vermelho, cobria tão cuidadosamente, deixando apenas a descoberto uns olhos pretos tentadores… E enquanto nós procuravamos descortinar de entre a enorme concorrência de máscaras, a preferida do nosso coração para com ela dançar a primeira polka, compunha ele em casa muito em segredo a sua cabeleira postiça e a "toilete" carnavalesca com que dali a pouco ia "embarrilar" os próprios amigos, fazendo ralar o bofe e mais miudezas a quantos dele se acercavam com amorosos galanteios, na mira de uma conquista... Deixando-os finalmente com água na boca...

O Herculano assim mudado de "sexo", colocava-se a uma esquina qualquer, aguardando o primeiro grupo de máscaras que transitassem de uma para outra Sociedade, introduzindo-se no rancho. A sua entrada nas salas não era por isso notada com facilidade. Os brincos postiços de que usava servir-se, favoreciam-no muito na astúcia empregada para iludir os mais finórios porteiros, e daí a pouco ei-lo dançando com qualquer "sofredor" do seu verdadeiro sexo que convencia rapidamente, dizendo-se a donzela mais pura do universo!

Certa vez o nosso Herculano vestiu-se a rigor como era seu hábito. Postou-se a uma esquina, e em dado momento envolveu-se num grupo numeroso de máscaras que se dirigia ao Grémio Sesimbrense. Após o reconhecimento do estilo, entraram na sala. O pianista Lorido tocou uma valsa e o Herculano sem mais convite agarra-se a uma máscara do seu rancho e ele aí vai sala fora bambaleando-se exageradamente para não ser reconhecido. Ainda não tinha dado uma volta completa na sala de baile, quando o seu par lhe segreda ao ouvido: – Maria, tenho as meias caídas; vem comigo lá dentro ao gabinete.

O nosso amigo Herculano suspendeu rapidamente a dança e seguiu com o seu par para o camarim das mulheres, como nós lhe chamávamos no teatro. Fechada a porta por dentro, a companheira do Herculano, tomando-o por uma das suas mais íntimas amigas, repetiu novamente: – Maria, puxa-me as meias para cima e põe as ligas no seu lugar: o espartilho não me deixa baixar à vontade.

Herculano Soares obedeceu prontamente, compondo tudo paulatinamente com exagerados requintes de amabilidade, mas trémulo e comovido ao contemplar tão perfeito e delicado modelo de mulher, e em fala de máscara que ele muito bem pronunciava, atirou-lhe com esta: – Ó rapariga, tira a máscara que estás suada!

O Herculano tinha em vista conhecer a rapariga para no dia seguinte lhe ralar os ossos, contando-lhe a cena da véspera, para ele memorável!... Mas a sua formosa companheira não lhe satisfez a curiosidade por qualquer motivo e o Herculano, que tanta água tinha feito crescer na boca dos outros em sucessivos bailes, saiu naquela noite do camarim das mulheres... a engolir em seco!...

Seixal, 26-10-1930
João Pólvora
Publicado originalmente n'O Sesimbrense
n.º 233, de 2-11-1930

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O Porto de Sesimbra

Iniciativas no século 19

A aspiração de Sesimbra por um porto de abrigo é antiga. A sua Câmara Municipal, na reunião de 18 de Setembro de 1890, aprovou uma Representação, dirigida ao Rei, em que lhe solicitava que:

se digne mandar proceder aos precisos estudos, e depois às necessárias obras, para que no extremo poente da praia desta vila, se faça um porto de abrigo para embarcações (...) O porto de abrigo é tão necessário e indispensável quanto é certo que, numa costa como a desta vila, nenhum recurso há para o salvamento de vidas e de embarcações – resultando daqui gravíssimas consequências, como é obvio.

Era nessa altura presidente da Câmara o armador Alípio Loureiro. Não é por isso de estranhar que, no ano seguinte, o engenheiro Adolfo Loureiro – que era seu primo – tenha elaborado uma planta para um porto de abrigo no local apontado pela Câmara (1).

Esta foi a primeira de inúmeras petições que os sesimbrenses fizeram, para que fosse construído um porto de abrigo na sua baía. Uma nova petição, em Abril de 1896, levou o Governo, através duma Portaria de 30 de Abril de 1896, a mandar estudar um pequeno abrigo, projecto que estava pronto em 5 de Agosto do mesmo ano.

É provável que seja este o projecto o que Adolfo Loureiro reproduziu na sua magna obra, Portos Marítimos de Portugal (de 1909).
Projecto de Adolfo Loureiro para um molhe de abrigo em Sesimbra,
publicado no ano de 1909.

Adolfo Loureiro escreve que o projecto "procurava aliar a necessidade impreterível dos barcos de pesca com a mais rigorosa economia, a fim de poder ser executado com o auxílio pecuniário, ou de trabalho, oferecido pela Câmara e pelos interessados, sem tolher de futuro a possibilidade de alargar-se-lhe a área abrigada, conforme fosse necessário, mas sem se perder coisa alguma do que agora se fizesse."

Ainda segundo Loureiro, "A área abrigada do SE mediria 2.100 m2, e 3.000 a do S., em baixa-mar, área que se elevaria a 10.000 m2 em preia-mar. Calculando-se que em média seriam precisos 35 metros quadrados por barco de pesca para estacionar, aquele pequeno abrigo poderia dar cabida a 60 barcos, refugiados do SE., e a 86 do S., ou a mais 28 em preia-mar."

Apresentado o projecto ao Conselho Superior de Obras Públicas e Minas, em Novembro de 1896, este foi de parecer que o projecto poderia ser aprovado a título de “tentativa e experiência”, parecendo-lhe, porém, que o molhe, pelas suas acanhadas dimensões, não ofereceria garantias de resistência em ocasião de fortes temporais. Assim, entendia o Conselho que deveria modificar-se o projecto, aumentando-se, tanto as dimensões dos blocos da primeira fiada, como os das fiadas superiores, elevando-se a largura do molhe de 2 a 4 metros, e dando-se-lhe maior altura.

Adolfo Loureiro, reconhecendo aquelas considerações eram "sensatas e prudentes", explica que foi por economia de meios que optou por aquela solução. A verdade é que nunca o Governo mandou executar a obra, nem sequer reformular o projecto.

O molhe dos anos 1920

A iniciativa de construção do porto só volta a ter novo impulso no período da Primeira República, e muito pela iniciativa de Joaquim Brandão, dado o seu prestígio junto do Governo. O ministro António Granjo visitou Sesimbra, em Agosto de 1921, a convite das autoridades locais, acompanhado do sr. engenheiro Claro da Rica, que não aprovou o plano do seu colega Adolfo Loureiro, mandando fazer outro. A obra teve então início, mas logo em Novembro desse ano, um vendaval destrói parte do molhe; reforçou-se a estrutura, mas em Janeiro de 1922 o mar provoca novos danos.
O primeiro molhe, construído na década de 1920.


Interromperam-se as obras para a realização de novos estudos; em 1923 consolidaram-se as obras já executadas e retomou-se a construção, mas dos 180 metros previstos, só se construíram 70 metros: em 1925, novos temporais quebraram o molhe em cinco partes, e a obra foi abandonada. A partir daí, a pouco e pouco, a malfadada muralha foi sendo destruída pelas vagas.
Inacabado e desprotegido, o molhe foi sendo destruído a pouco e pouco.



O porto das décadas de 40 e 50

Entre 1947 e 1949 foi construído um novo molhe, agora num ponto mais extremo da baía, permitindo alargar a área de protecção das embarcações. Mesmo assim, o pano da muralha revelou-se insuficiente para conter as vagas, pelo que teve de ser acrescentada uma cortina de cimento ao longo de todo o molhe.

O novo molhe, durante a construção.

Um molhe, porém, não chega para fazer um porto de abrigo. Só na década seguinte é que foram contruídas as primeiras estruturas internas do porto, nomeadamente uma ponte cais em forma de T, que mais tarde viria a ser alargada, abrigando então o edifício da lota, que até aí tinha lugar na praia, a poente da Fortaleza de Santiago.

O molhe visto desde o Forte do Cavalo.
à esquerda é visível a ponte-cais em forma de T.

Em 1950 foi aberto concurso para obras no interior no porto, incluindo uma rampa vazadouro, muros de resguardo do enraizamento do molhe, escadas no empedrado para serviço de pequenas embarcações, enchimento da caldeira junto ao molhe velho, ponte cais e respectivo acesso, trabalhos que tiveram início em Dezembro, terminando em 1951. No entanto, parte destes investimentos só seriam concretizados em 1963.
1963: construção da estrutura para instalação de diversos equipamentos.


Plataforma que resultou da ampliação da ponte-cais.


Só em 1973 é que a lota pode ser transferida da praia para o novo edifício no porto de abrigo. Apesar de representar uma melhoria das condições de higiene em que era feita a transacção do peixe, a mudança representou também a perda de um cartaz turístico inigualável, e até a perca de postos de trabalho: os numerosos pescadores que se ocupavam, com as suas chatas, do transporte do peixe, desde as barcas até à praia, ficaram sem trabalho dum dia para o outro.

Nesse ano de 1973, nas quadras dos Santos Populares, encontravam-se várias referências à mudança da lota:

  Sesimbra já não tem lota
Oh meu rico S. João
Levaram-na lá p'ra doca
Pró "Campo de Concentração".
A lota foi p'ra "barraca"
E de quem foi o capricho?
Do bicho de sete cabeças
Ou sete cabeças sem bicho.

Primitivas instalações da lota no porto de abrigo
de Sesimbra, que começaram a funcionar em 1973.


O porto dos anos 80

O novo porto representou uma grande melhoria para as condições em que operava a frota de pesca sesimbrense. No entanto, logo aquando da sua construção, se verificou a sua exiguidade. Aproveitando a melhoria de condições portuárias, mas também das novas tecnologias de navegação (rádio-telefone, sondas electrónicas, rádio-goniometros, sistemas de navegação Loran e Ómega) os barcos passaram a navegar para mais longe, para novos pesqueiros, aumentando a dimensão das embarcações e da frota.

A exigência de um novo porto de pesca intensificou-se após a Revolução de 1974 e, depois de muita discussão em torno do projecto do novo porto, em Dezembro de 1984 foi finalmente adjudicada a sua construção.
Construção do novo molhe, em 1985.


Em Dezembro de 1985 já se encontrava construído 1/3 do novo molhe.


Em Outubro de 1987 o novo molhe, com 900 m de comprimento, encontrava-se concluído, seguindo-se mais dois meses para acabamento do revestimento interior. Passar-se-ia então à construção dos equipamentos interiores: cais de acostagem rampas, edifícios. Já se ponderava também a necessidade de um quebra-mar a partir da praia, frente ao Hotel do Mar.

Início dos aterros para construção das infraestruturas portuárias.


Construção das rampas para os estaleiros navais.

Notas:

(1) Carlos Manito Torres, Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1-5-1934
João Augusto Aldeia

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

   Sesimbrenses ilustres   
Adelino José de Carvalho
um azoiano pioneiro do desporto em Sesimbra
 

Adelino José de Carvalho nasceu na Azoia, no dia 28 de Abril de 1895, filho de Sebastião Marques e Mariana da Conceição. Casou com a sesimbrense Maria Albertina Carapinha.

Fez a escola primária em Sesimbra, deslocando-se diariamente desde a Azoia. Trabalhou como marçano no comércio da vila, onde depois se veio a estabelecer com loja de fanqueiro e retrosaria. A sua "Loja do Povo", na Rua Cândido dos Reis, foi um dos estabelecimentos comerciais de maior qualidade em Sesimbra, cuja tradição ainda persiste na "Loja do Zé João", o qual iniciou a sua actividade comercial, também como marçano, sob a "protecção" do mestre Adelino.

Adelino José de Carvalho destacou-se sobretudo na promoção do desporto em Sesimbra, do qual foi pioneiro e um dos mais persistentes organizadores. Dedicava uma especial atenção às leis e regulamentos desportivos, ajudando a fundamentar uma prática desportiva transparente, aquilo que hoje se designa como fair play.

Foi fundador do União Futebol Sesimbra, em 1915, do qual era o sócio n.º 1. Uma das grandes inovações deste clube foi a criação dum campo de jogos na Vila Amália, que passou depois para o Grupo Desportivo de Sesimbra, em 1947, quando se deu a agregação dos clubes União, Azes e Vitória.
 
Anúncios da "Loja do Povo".


A dedicação de Adelino José de Carvalho ao União chegava ao ponto de, para além das tarefas directivas, se ocupar diligentemente da manutenção do campo de jogos, sendo frequente vê-lo, "solitário e diligente, serrando, pregando, pintando as ripas carecidas de arranjo, ou de pá e picareta removendo terras ou regularizando valas. E não era apenas o trabalho que oferecia, o que já não seria pouco, mas também a ferramenta e os materiais necessários". (1)

Igual dedicação votou ao Grupo Desportivo de Sesimbra, tendo liderado, juntamente com José Franco Cheis, a iniciativa de construção de um ringue da patinagem, inaugurado em Outubro de 1947, com a presença do Diretor-Geral dos Desportos, Sacramento Monteiro. No acto de inauguração, Joaquim Pinto Braz, salientando que se tratava de uma "obra de dois bons desportistas sesimbrenses", destacou especialmente Adelino José de Carvalho, classificando-o como o "percussor dos desportos em Sesimbra, a quem o Grupo Desportivo de Sesimbra quer testemunhar a sua gratidão, dando o seu nome ao Ring, não só pelo que acaba de realizar, mas ainda pela larga campanha ao serviço do desporto".
Placa inaugural do recinto de patinagem.


Já na última assembleia geral do União, antes da "fusão" dos clubes, fora prestada uma especial homenagem ao senhor Adelino, classificando-o como "o mais antigo desportista sesimbrense".

Adelino José de Carvalho teve também papel de destaque noutras colectividades associativas, tendo presidido à direcção da Sociedade Musical Sesimbrense, em 1945. Foi um dos fundadores do Clube Naval de Sesimbra. Fez ainda parte, como representante do Comércio, da "Comissão de Iniciativa" formada em 1937, para desenvolver o turismo sesimbrense.
João Augusto Aldeia



(1) O Sesimbrense de 21-Julho-1977 [ Leia AQUI ]

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

   Sesimbrenses ilustres   
Real Hospital de Todos os Santos - Lisboa
Santos de Torres  

Santos de Torres foi Professor de cirurgia no Real Hospital de Todos os Santos, de Lisboa. Nasceu em Sesimbra a 1 de Novembro de 1676, filho de Manuel Farto Vieira e de Maria Josefa, falecendo em 1749.

Foi nomeado em 15 de Junho de 1717, com o ordenado de "cirurgião de males", e mais 30$000 réis por ano para compor e aplicar remédios que lhe ensinara o médico espanhol, seu colega, D. Jerónimo Garneria, que naquele tempo estivera no hospital.

Foi cirurgião da câmara do infante D. António, irmão de D. João V, e examinador de cirurgia. Aposentou-se em 1748, falecendo pouco depois.

Escreveu: "Promptuario pharmaco e cirurgico, em que se acharão limitados os pesos, quantidades, formas e disposições de muitos e singulares remedios simples e compostos", obra que dedicou à Senhora do Cabo. Foi impressa em Lisboa em 1741; fez-se 2.ª edição em 1756.

Na interpretação de Santos de Torres, "a cabeça é aquele nobre membro, que se acha no lugar mais eminente do corpo", pois "do cérebro se enviam os espíritos animais ou suco animal pelos nervos a todas as partes do corpo; esta acção se não podia fazer mais facilmente que de cima para baixo em resposta da impulsão feita por uma parte substancial tão mole, como o cérebro é."

Tisana de Aveya solutiva sem mel

lb. 3 dissolva de xarope violado de nove infusões;
Aureo;
Diagridio sulfurado, gr. X;
e divida em duas bebidas.


Este remédio acima descripto, se dê a metade ao enfermo pela manhãa, guardando-se as mesmas advertências, e circunstâncias, que ficam ditas no Capítulo do Fleimão, quando receitamos os remédio purgante; e obrando este remédio suficientemente, se suspenda no dia seguinte o uzo da outra parte, a qual se dê ao enfermo depois de alcançar hum dia, como fica dito.
Purgado que assim seja o enfermo, é preciso tratar da causa conjuncta, que em a parte se acha endurecida, para o que hé mui conveniente o remédio seguinte [Emplastro Zacarias]


João Augusto Aldeia

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Arrais Diogo 

Diogo Justino dos Reis — o Arrais Diogo — faleceu em 23 Março 1927, com 64 anos. Foi um verdadeiro símbolo da classe piscatória e venerado por todos os seus conterrâneos.

Sendo analfabeto, era contudo tratável e muito inteligente, revelando bastos conhecimentos da pesca e assuntos hidrográficos, pois conhecia perfeitamente os fundos de toda a Costa, pelas suas constantes experiências

A fama dos seus conhecimentos de náutico sabedor e destemido, chegou até junto de El-Rei D. Carlos, que sendo um grande amante da pesca e um oceanógrafo erudito, quis um dia conhecer o velho pescador de Sesimbra.

Levado um dia o Arrais Diogo à presença de D. Carlos, quando Sua Majestade se encontrava a bordo do iate Amélia, ancorado na sua baía, o monarca sentiu logo grande afeição pelo pescador porque, embora as suas palavras fossem rudes, o seu peito albergava um excelente coração e o seu cérebro era dotado de inteligência. Daí em diante, sempre que D. Carlos fazia as suas viagens de recreio até à baía de Sesimbra, o Arrais Diogo era convidado a ir a bordo do iate Amélia, porque o Rei gostava imenso de falar com o humilde pescador e aproveitar os seus vastos conhecimentos de pesca. Assim se foi criando grande estima entre D. Carlos e o Arrais Diogo.

*   *   *

Num dos dias do ano de 1888, numa tarde cálida de Agosto, o mestre Diogo estava na praia à sombra de uma aiola, quando o iate Amélia fundeou na nossa baía.

Pouco tempo depois, vê lançar ao mar um escaler, que trazendo a bordo alguns marinheiros e um oficial, se dirigia para terra. Esse oficial às ordens de D. Carlos era D. Fernando Serpa, que saltando em terra e vendo na praia o Diogo, mostrou logo o seu contentamento, pois vinha precisamente em procura do pescador, e em nome do Rei, convidá-lo a ir a bordo.

Era já tanta a confiança que o Arrais nem foi a casa mudar de indumentária, tal não era o à-vontade em que D. Carlos o colocava.

Uma vez a bordo, junto do Rei, seguiram em passeio pela Costa e, durante o trajecto, várias vezes foi interrogado sobre a profundidade de certos locais e o seu conteúdo, isto é, se os fundos continham rochedos, lodos ou areias. As respostas eram prontas e concisas, porque foram confirmadas pelas experiências feitas depois com sondagens.

Por vezes, e durante muito tempo, o Diogo foi hóspede do Rei.

*   *   *

Noutra ocasião, estava o Arrais Diogo a pescar no mar da "Pedra" e D. Carlos, andando a passear pela baía num escaler, reconheceu ao longe o velho pescador.

Sublime momento se proporcionou a D. Carlos para ouvir o seu amigo...

Ordenou que o escaler se aproximasse da embarcação onde Diogo exercia a sua faina. O marítimo tão entretido estava, que nem deu pela aproximação do escaler, a que D. Carlos fez propositadamente parar o motor.

El-Rei então começou a puxar o aparelho com o pé. Neste momento Diogo volta-se e diz: — "Eh home! Eh home!". A esta repentina exclamação, D. Carlos não pode conter grandes gargalhadas e inicia-se então, com a maior afabilidade, as habituais conversas sobre pesca.

*   *   *

Noutra ocasião, em que o mau tempo não permitia o exercício da pesca e o Arrais Diogo estava apoquentadíssimo com a falta de dinheiro, para ele e a família comer e pagar a renda das casas onde morava — pois por falta de pagamento já o senhorio o ameaçara de o despedir — uma ideia lhe absorveu o espírito: ir a Lisboa falar ao Rei e contar-lhe a sua situação. Se bem o pensou, melhor pôs em prática.

Chegado ao Paço das Necessidades, dirigiu-se à sentinela e disse-lhe: "Eu quero falar ao Rei". O soldado, olhando de soslaio para o pescador, já pela forma como se lhe dirigiu, como ainda pelo simples trajo, não fez caso das palavras de Diogo. Este, vendo o desdém com que era recebido pela sentinela, continuou insistindo, suplicando em altos gritos: "Quero falar ao Rei, quero falar ao Rei...", até que, ao barulho, vieram mais elementos da guarda e o oficial comandante que o interrogou: — "O que é que você quer ?"

O Arrais Diogo volta à carga: "Quero falar ao Rei". A insistência foi tão grande que o oficial comunicou ao coronel almoxarife a presença do visitante e da sua teimosia. Verificada a identidade do pescador e informado El-Rei do indivíduo que era, do estado em que se encontrava e — quando todos imaginavam que não só a entrada lhe seria recusada, como ficaria preso — enganaram-se, porque D. Carlos ordenou que o introduzissem no Paço e o conduzissem até junto dele, deixando toda aquela gente boquiaberta, pela consideração que tal homem merecia ao Rei.

Sempre que o Arrais Diogo tinha falta de dinheiro, se dirigia a D. Carlos e sempre foi carinhosamente atendido.

Uma ocasião o Rei ofereceu-lhe uma colocação, mas o pescador recusou uma velhice descansada, só para poder andar livremente no mar que ele tanto adorava e donde arrancava o pão quotidiano.

Podíamos relatar aqui mais alguns factos da intimidade entre o Rei e o humilde pescador, mas os que deixamos apontados são suficientes para demonstrar em quanta estima tinha Sua Majestade o Arrais Diogo.
Publicado originalmente n'O Sesimbrense
n.º 694, de 5-11-1939, sem indicação de autor.