quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Mercado de Sesimbra,
antiga fábrica de conservas


Actualmente é o edifício do Mercado Municipal, com portas para a rua da República, av. da Liberdade, e largo de Bombaldes. Mas começou por ser a modesta fábrica de conservas “União Fabril”, cuja referência mais antiga data de 1892. Posteriormente funcionaram aqui as empresas conserveiras “Marques Pereira & Figueiredo”, “Ferdinand Garrec”, “Leon Delpeut” e, finalmente, a “Fábrica Lusitana”. Em 1934 o edifício passou a acolher o mercado de produtos agrícolas, que antes se fazia ao ar livre.


União Fabril

A mais antiga referência conhecida à fábrica de conservas de peixe “União Fabril” data de Outubro de 1892, numa escritura em que se afirma estar localizada na rua da Palmeira, tendo sido a empresa constituída por seis sócios, um dos quais, Justiniano Marques Pereira, é o único que continuará ligado à história da fábrica por mais tempo. Em Maio de 1896 a fábrica ainda funcionava, tendo o seu pessoal assistido à missa pela alma de José Inácio da Costa, que estaria associado à outra fábrica de conservas: a Nacional.

Marques Pereira & Figueiredo
A modesta fábrica “União Fabril”, mais tarde "Marques Pereira & Figueiredo", ocupava uma casa de pequenas dimensões. No entanto, foi o embrião duma fábrica que foi sendo ampliada ao longo dos anos, até ocupar toda a zona do actual mercado, e ainda um bocado da actual avenida da Liberdade. [Arquivo Municipal de Sesimbra]

A firma Marques Pereira & Figueiredo foi constituída em Julho de 1897, pelo já referido Justiniano Marques Pereira, e por Leopoldo Rochenback de Figueiredo. Mas trata-se de uma associação atípica: Justiniano Pereira não entra com capital algum – é o chamado “sócio de indústria”, cabendo-lhe gerir o trabalho da fábrica; Figueiredo é o “sócio capitalista”, entrando com cinco contos (ou seja, cinco milhões de Reais), e cabia-lhe indicar quais as “marcas” a serem fabricadas, em exclusividade, pela fábrica, e seria ele quem depois compraria a produção.

A realidade é que, por detrás deste investimento, encontra-se o industrial francês Leon Delpeut, já antes estabelecido com fábricas de conservas em Setúbal. É ele quem toma de arrendamento o edifício da fábrica, e é a ele que devem ser entregues os bens, em caso de dissolução da empresa. O objectivo de Leon Delpeut era o de manter em Sesimbra uma unidade fabril disponível para complementar a produção de conservas de Setúbal, nomeadamente quando ocorressem ali greves que paralisassem a produção.

Em Dezembro de 1899, por exemplo, os soldadores conserveiros de Sesimbra reúnem para tratar do problema da fábrica estar sem trabalho há seis meses, a não ser esporadicamente, e resolvem mandar uma delegação a Setúbal falar com Leon Delpeut; este promete-lhes algum trabalho, mas a gerência de Sesimbra não o concretiza.

Outro episódio ocorreu em Junho de 1907: Delpeut transfere para Sesimbra trabalhos de soldadura de latas, por haver uma greve em Setúbal. Os soldadores de Sesimbra recusam o trabalho, por solidariedade, e então Leon Delpeut acusa-os, nos jornais, de “receberem ordens” de Setúbal.

Ferdinand Garrec & C.ª

Pormenor do “projecto” que foi entregue à Câmara pela empresa Ferdinand Garrec & C.ª, em 1916, para ampliar a fábrica até à rua Serpa Pinto (actual rua da República). [Arquivo Municipal de Sesimbra]


A partir de Fevereiro de 1902, os contactos feitos com a Câmara, relativos a esta fábrica, passam a ser feitos pela firma Ferdinand Garrec & Cª. Trata-se de outra empresa conserveira instalada em Setúbal, mas da qual Delpeut é também dono e principal administrador: a fábrica de Sesimbra continua a servir para complementar as necessidades de produção das fábricas de Delpeut.

A fábrica já tinha sofrido melhoramentos em Dezembro de 1897 e em Agosto de 1898 (veja-se o desenho publicado nesta página), e em Agosto e Setembro de 1902 sofre novas reparações. Nesta altura as instalações tinham fachada para a rua da Palmeira (actual rua Serpa Pinto, que se prolongava até fazer esquina com a actual rua Jorge Nunes) e entrada para o pessoal pela travessa da Palmeira, que hoje já não existe, por ter sido aberta a avenida da Liberdade, mas o arranjo urbanístico realizado há poucos anos deixou assinalado no solo o local desta artéria.

Projecto de ampliação da fábrica em 1916. Em baixo ficava a actual av. da Liberdade, e à esquerda a rua da República. [Arquivo Municipal de Sesimbra]


No entanto, é em 1916 que terá lugar uma grande ampliação da fábrica, que a prolongará até à rua da República, encostada ao “quintal de José Rodrigues do Giro”, actualmente ocupado pelo edifício da família Giro, que alberga também a pastelaria Caseiro e a farmácia Leão. O projecto revela tratar-se de um barracão que ocupava parte do espaço que está hoje utilizado pelas bancas de verduras.

Sociedade Lusitana de Comércio

A fábrica de conservas passou depois para a Sociedade Lusitana de Comércio, passando a ser conhecida como Fábrica Lusitana. A empresa possuía igualmente uma outra unidade fabril em Santana. Era seu administrador Francisco Marques Pereira, que tinha também negócios em Marrocos, tendo chegado a instalar uma fábrica de guano na cidade de Safi.

Porém, a falta de peixe que afectou a costa de Sesimbra nos anos 30, foi fatal para a empresa, que sofreu uma acção de penhora por parte da Casa José Henrique Totta (futuro banco Totta). Em 29 de Outubro de 1933 realizou-se um leilão para venda das suas instalações fabris em Sesimbra (pelo valor base de 50 mil escudos) e Santana (valor base de 25 mil escudos). Não apareceram interessados e a 17 de Dezembro realizou-se novo leilão, já sem valor base para o edifício de Sesimbra, e o de Santana por metade.

Mercado Municipal
A Câmara de Sesimbra acabaria por comprar o edifício da fábrica Lusitana, onde veio a instalar o mercado de produtos agrícolas, que antes se fazia ao ar livre.

A inauguração do novo mercado teve lugar no Domingo, dia 1 de Abril de 1934. Mas, entretanto, foi demolida parte da fábrica, de modo a tornar mais ampla a avenida a que seria dado o nome de "Boa Esperança" (nome da barca do arrais Alberto Pitorra, que salvara muitos pescadores durante o vendaval de 9 de Abril de 1934), depois mudado para “Salazar”, e finalmente da "Liberdade".

Mesmo a funcionar como mercado municipal, o edifício viria também a ter utilização como sala de baile, sobretudo na época carnavalesca, organizados pelos Bombeiros Voluntários de Sesimbra, como forma de angariar fundos para financiar as suas beneméritas actividades.
Reconstrução do Mercado, em 1976.

Soldadores conserveiros


Já me vai custando
Subir a ladeira
Vai-me receando
Que o meu pai não queira

Que o meu pai não queira
Minha mãe não queria
Um cento de latas
Soldadas num dia

Soldadas num dia
Solda numa hora
Vai para o buano
Na fábrica do Chora

Na fábrica do Chora
Cheia de flores
Quem ganhou a greve
Foi os soldadores

Olha os soldadores
Como vão armados
Com seus tabuleiros
Todos afadistados

Todos afadistados
Ao rigor do tempo
Quem ganhou a greve
Foi o parlamento

 
 
 
Soldadores, pernas de aranha
Coisa de que eu nunca gostei
Para minha felicidade
Pernas de aranha arranjei.





A quadra de cima, divulgada por J. Roquette n’O Sesimbrense, em 1982, faz alusão aos soldadores conserveiros como bons partidos para casar.

Os versos à esquerda são da letra de uma canção alusiva ao trabalho nas fábricas de Sesimbra, e foi publicada no jornal Povo de Sesimbra, em 1976.

A “fabrica do Chora” poderá ser a fábrica de conservas que existiu na rua Manuel de Arriaga, e a palavra buano (ou guano), refere-se a um adubo feito a partir de sobras de peixe.

No último verso, a palavra “parlamento” tem o sentido de “assembleia dos trabalhadores”, segundo a senhora Encarnação Fuzeta, antiga operária conserveira, que nos deu a conhecer a canção.
 



Leon Delpeut


Industrial conserveiro com fábricas em Setúbal e Sesimbra, Leon Delpeut destacou-se pela forma vigorosa com que enfrentou o movimento reivindicativo operário, organizando os empresários conserveiros contra os movimentos grevistas.

Foram várias as estratégias a que Delpeut recorreu. O investimento que fez em Sesimbra, na antiga fábrica União Fabril, tinha também como objectivo dispor de uma fábrica a que podia recorrer quando tivesse problemas laborais em Setúbal.

Muitas vezes as greves eram decretadas quando havia peixe na fábrica, que se estragaria se não fosse preparado e enlatado. Delpeut escreveu que se lhe fizessem isso, ele “teria tratado apenas de salvar o peixe, fechando depois a Fábrica”.

Leon Delpeut foi um dos mais enérgicos defensores das “cauções”: uma verba que era devida aos soldadores mas que ficava retida pelos patrões como garantia de qualquer prejuízo, e que acabou por se tornar num sério entrave à realização de greves pelos soldadores conserveiros. E Delpeut era perentório: “Sem caução, não dou trabalho!”
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João Augusto Aldeia


[ Publicado originalmente n'O Sesimbrense n.º 1161 de 30 de Abril de 2012 ]