quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

José Joaquim Soares de Barros: um cientista
nas praias de Sesimbra
 

José Joaquim Soares de Barros nasceu em Setúbal, em 1721. Ao longo da sua vida teve uma brilhante carreira de cientista e diplomata, tendo pertencido às Academias de Ciências de Lisboa, de Paris e de Berlim.

Com 27 anos, foi enviado, pelo Marquês de Pombal, para Londres e Paris, para estudar Astronomia, com o objectivo expresso de vir a aplicar esses conhecimentos em apoio à política nacional, nomeadamente na determinação das latitudes e longitudes, com aplicação ao domínio geográfico dos territórios do império português. Em Paris, Soares de Barros foi discípulo do reputado astrónomo e geógrafo Joseph Nicolas Deslile.

Escreveu numerosos artigos para as Academias Científicas a que pertenceu; na de Lisboa destacam-se o seu estudo sobre o sal de Setúbal, e a determinação da população portuguesa a partir do rol dos besteiros do conto.

Um dia, porém, um “balanço da vida”, atirou-o para Sesimbra, onde dedicou o tempo a estudar a vida marinha que era arrojada às praias.

Peripécias diplomáticas

Como é que um homem com tais qualificações vem morar para Sesimbra? Trata-se de uma história algo rocambolesca.

Aproveitando os conhecimentos de Soares de Barros em Paris, o Marquês de Pombal encarrega-o de uma missão naquela cidade. É verdade que Portugal tinha um embaixador em Paris, mas era frequente serem escolhidas terceiras pessoas para missões diplomáticas específicas, as quais teriam de se entender com os diplomatas de carreira.

O problema de Soares de Barros foi precisamente esse: não se entendeu, ou melhor, desentendeu-se de tal forma com o embaixador Português que, a certa altura, julgando que a sua vida estaria em risco, abandonou a cidade-luz, e meteu-se a caminho da Pátria: ou seja, saiu “à francesa”.

Desta forma, livrou-se do Embaixador, mas arranjou outro problema: como iria explicar a Sebastião José de Carvalho Melo o facto de não ter cumprido a missão de que este o incumbira? A “solução” de Soares de Barros foi, uma vez mais, uma pequena fuga: veio morar para Sesimbra, terra suficientemente modesta, longe dos olhares dos “importantes” da época, para, dessa forma, tentar passar despercebido. E foi assim, sem muito para fazer, que se entreteve a estudar, nas praias da vila piscatória, o que acontecia às grandes algas castanhas que o mar arrojava à praia em quantidades diversas, conforme as diferentes épocas do ano.
Registo do óbito de José Joaquim Soares de Barros,
na freguesia de Santiago, em 14 de Novembro de 1793.


O mistério do golfo

Estamos em 2011, pouco mais de duzentos anos após os esforços científicos dos Académicos portugueses. Os diferentes ramos da Ciência, entretanto, evoluíram muitíssimo face aos conhecimentos da era de setecentos. No entanto, nos nossos dias, um dos mistérios da biologia marinha é o precisamente do desaparecimento do “golfo”: as grandes algas laminárias castanhas que crescem junto à costa.

Sesimbra é disso um exemplo: desapareceram as grandes concentrações de golfo que se encontravam nas rochas, junto aos morros do Macorrilho e Alcatraz, ou no Caneiro, e também por toda a costa sesimbrense, desde o Risco à Lagoa.


Memória dos "pensamentos e observações" em Sesimbra.
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Mas não se trata de um problema apenas local, nem apenas Português: a laminária castanha está a desaparecer por todo o mundo. Por exemplo: no sudoeste da Califórnia americana, desapareceram 80% das florestas de golfo, desde os anos 1960.

Soares de Barros começa as suas observações referindo que “Em Dezembro e Janeiro não aparecia nas praia de Cezimbra quase nada da Alga da grande espécie, a que vulgarmente chamam Golfo”, apesar das fortes ondas que, naquela época, a poderiam arrastar. Acrescenta também que em Janeiro quase não viu a alga a que chama Chicória (Ulva Linza, ou alface-domar domar), e que, pelas suas folhas e “bela verdura, é em tudo parecida à [alface] da terra, e de qu há uma prodigiosa abundância, no seu tempo próprio, quase ao longo da mesma praia”.

Em Maio, porém, aparecem já muitos Golfos, mas ainda com raízes de pequeno volume, e “aparecem também algumas Alforrecas, e Estrelas, ainda que pequenas”. Nos meses seguintes, os Golfos aumentam em quantidade e tamanho, e aparecem também a pulga do mar, escolopendas e “milipedes” (provavelmente, minhocas).

Foi em Outubro que Soares de Barros viu os maiores golfos, com caules de “duas varas de comprimento” (2,2 metros). O interior das bases do golfo, “serve de morada a milhares de Insectos, e de assento, apoio e ponto fixo a vários Litófitos, e à maior parte de Coralinas”. Soares de Barros anotou ainda que “Estes Golfos, assim chamados pelo vulgo, são notavelmente fosfóricos, e algumas vezes durante o tempo da noite pareciam brilhar como o lume mais ardente”.

Algas sacarinas

Soares de Barros chama também a atenção para uma alga que poderia ser usada para fazer açúcar, e que éra vulgar na nossa Costa, “especialmente a de Cezimbra”.

Esta planta, escreve Soares de Barros: “é a que produz uma certa porção do melhor açúcar, o mais doce e puro de todos os que tenho visto, e ainda mais branco e mais cristalizado que aquele a que os Franceses chamam à la Royale.

Explica-nos: “Este açúcar forma-se sobre a superfície da folha do mencionado Vegetal, como uma espécie de eflorescência, depois que está por certo tempo ao Sol; e para se tirar não é preciso mais nada que sacudi-lo, ou passar-lhe a barba de uma pena”.

O uso de algas na alimentação tem mais tradições no Japão, mas essa tradição tem vindo a conquistar o Ocidente, e o certo é que na Galiza, aqui bem perto, já se colhem algas para fins alimentares, nomeadamente a alga sacarina referida pelo cientista setubalense.

Mas Soares de Barros aponta que também a alfacedo-mar pode ter aplicação culinária: “no tempo da esterilidade pode servir de sustento; eu a provei e o seu sabor não é amargoso nem picante, nem tem absolutamente nada de ingrato; e creio que, preparada em salada, lisongeará mais o gosto e terá mais votos a seu favor.” Soares de Barros termina a sua comunicação à Academia, inspirado nas observações na praia de Sesimbra, com a análise dos pequenos animais que se fixam aos cascos dos navios e que os danificam – um problema ainda hoje importante, e que justifica, por exemplo, o uso de tintas antivegetativas, cuja composição é actualmente objecto de investigação.

Soares de Barros e Sesimbra

Este texto sobre o Golfo e outras espécies marinhas, não é a única referência que Soares de Barros faz a Sesimbra. Nas “Considerações sobre os benefícios do sal comum”, por exemplo, afirma que, quando as redes não são fabricadas com a necessária flexibilidade, e não ficando, por isso, convenientemente bambas, o peixe não se embaraça tão facilmente: “esta é a razão porque os pescadores de Sesimbra pescam poucas pescadas, quando os ericeiros, que sabem trabalhar melhor as suas redes, sabem pescar mais”. Esta crítica talvez tenha alguma razão de ser, pois os pescadores de Sesimbra dominam melhor as artes do anzol do que das redes, e a pescada, em Sesimbra, era essencialmente capturada com linha de anzol.

Mas Soares de Barros, numa outra análise, faz um grande elogio aos pescadores de Setúbal, Alcácer, Sines e Sesimbra: "é para pasmar que tais homens mostrassem em semelhante comércio o mais fino discernimento, e a mais esquisita política: aquela mesma que alguns séculos depois soube formar o Paládio de Inglaterra, no famoso Acto de Navegação, concebido por Cromwell, e vigorizado por Carlos II. Assim consta por documentos que mostra que os moradores de Cezimbra não consentiam que os navios estrangeiros viessem ali carregar de pescaria, sem que fossem fretados por sua conta, e que a equipagem fosse composta de uma parte dos mareantes da mesma vila."

Cezimbra: a solidão duma larga praia
«Um balanço da minha vida atirou comigo a Cezimbra, sem eu saber para que ia ali; mas o tempo me foi mostrando o que eu tinha que admirar na solidão duma larga praia, cercada de altos rochedos, e das soberbas ondas do Mar. Os três Reinos da Natureza, dentro da terra e das águas, se acham ali em mui pequenos espaços com vistas muito notáveis; largas massas de Minerais penetram escabrosas montanhas e oferecem ao trabalho dos homens objectos de mui variadas utilidades; por outra parte, no Domínio do Oceano, espalhados pelo seu fundo, se estendem abundantes pastos que dão sustento a infinitos viventes nas suas sombrias moradas. Por cima destes lugares, nos espaços de outro Elemento, voa o povo miúdo das Aves, umas que nunca saem desses distritos, e outras que de distantes Países vêm buscar naquelas partes o seu alimento e regalo, nos dias da última Primavera. Enfim, para nenhum lado os olhos se movem, que não tenham em que ocupar-se, e que não dêem muito exercício à reflexão com o prazer da novidade.»


“Golfo” é o nome genérico que em Sesimbra se dá a uma alga castanha de grandes proporções, que existia em grande quantidade na nossa costa, pelo menos até meados do século XX. Crescendo em grandes concentrações, forma uma espécie de “floresta” submarina. Espalhadas por todo o mundo, as florestas de golfo (ou “kelp”, como é designada internacionalmente) constituem habitats de grande interesse para várias espécies marinhas. O fenómeno do desaparecimento do golfo, também por todo o mundo, constitui um dos grandes mistérios da biologia marinha.


Bibliografia:

Barros, José Joaquim Soares (1789) Considerações sobre os grandes benefícios do sal, in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo I, 1789 - p. 30-31
Barros, José Joaquim Soares (1789) Memória sobre as causas da diferente população de Portugal em diversos tempos da Monarquia, in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo I, 1789 - p. 123-151
Barros, José Joaquim Soares (1812) Pensamentos e observações sobre mui curiosos e importantes objectos que se apresentam nas Costas de Portugal e no fundo dos nossos Mares, in Memórias de Matemática e Física da Academia das Ciências de Lisboa, Tomo III, Parte L, Lisboa, 1912 - p. 73-84
Cortesão, Jaime (1953) Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores – Instituto Rio Branco, 1953, p. 313-315.

João Augusto Aldeia


[ Publicado originalmente n'O Sesimbrense n.º 1156 de 24-11-2011 ]