terça-feira, 23 de outubro de 2018

Fonte dos Curvais

Na Fonte dos Curvais — na Aldeia do Meco — existe uma curiosa placa, com as letras C M C (Câmara Municipal de Cezimbra) que parece assinalar a data de 10-6-1013. Ora, em 1013 não existia qualquer Câmara Municipal. O mais provável é que a data assinalada seja 1913, ano em que foram feitas obras naquela fonte. De facto, na reunião da Câmara de Sesimbra de 7 de Junho de 1913 foi deliberado "continuar as obras da Fonte dos Curvais e respectivo lavadouro".

Observando a placa com atenção, detecta-se que o segundo algarismo do ano é um zero, mas parece também haver uma emenda para o transformar num nove. Uma possibilidade é que o canteiro autor do trabalho se tenha enganado, e depois se tenha tentado emendar — embora a rasura pareça ter sido feita por alguém com menor habilidade. Quando, mais recentemente, alguém pintou os algarismos, avivou o zero, uma data improvável para a obra de cobertura daquela fonte.

Uma referência mais antiga aos Curvais é da reunião da Câmara de Sesimbra em 23 de Julho de 1896, onde foi deliberado mandar "reparar os chafarizes dos Curvais, do Zambujal e da Califórnia, e colocar uma bica na fonte do Caninho". Como aqui se usa apenas a designação de "chafariz", e na deliberação de 1913 se refere "fonte" e "lavadouro", é provável que só em 1913 é que terá sido feita a cobertura daquele lavadouro, que usa a água da fonte cuja nascente se encontra muito próxima.

Uma outra referência à povoação dos Curvais data de 9 de Janeiro de 1914, quando a Câmara fixou a tabela de preços para deslocações do médico municipal: para uma deslocação aos Curvais, o médico cobraria um escudo (1$00), valor idêntico para sítios como o Cabo Espichel, as Aguncheiras, a Lagoa, a Apostiça e o Parral.

Aldeia do Meco, Alfarim e Fornos pagariam apenas noventa centavos ($90), enquanto os Pinherinhos, o Facho da Azóia, as Caixas, a Aiana de Cima, a Quinta do Pinhal, o Coval da Formiga e Calhariz pagariam $80. Zambujal, Venda Nova, Maçã e Pedreiras pagariam $70.

$60 era a tarifa para a Assenta, o Facho de Santana, a Almoinha e a Quintola de Santana. A tarifa mais baixa, 50 centavos, era devida pelas deslocações a Santana, Corredoura, Sampaio e Cotovia.

O local de residência do médico era a vila de Sesimbra. O vereador Francisco Vieira Real propôs, nesta mesma reunião, que a residência fosse no lugar de Santana mas, posta à votação, a proposta foi rejeitada

Mais tarde, em 1960, a população dos Curvais dirigiu à Câmara um pedido para que "a estrada que liga àquele lugar fosse prolongada até ao mar". Na reunião de 29 de Junho daquele ano, a Câmara deliberou mandar elaborar projecto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

1971: o último ano das armações da sardinha em Sesimbra

(Fotografia de Artur Pastor)
     As armações de pesca da sardinha tiveram a sua origem nos acedares, inventados no século 15, em Sesimbra. Na sua forma mais sofisticada — as armações à valenciana, com duas câmaras, bucho e copo — só apareceram no século 19, sendo referidas pela primeira vez numa escritura de 1866. Impulsionadas pelo sistema capitalista, estas armações espalharam-se rapidamente pela costa da Arrábida, chegando às duas dezenas, localizadas entre o Portinho e o Cabo Espichel — mas outras ainda se instalariam mais a sul, na Costa da Galé.

     Este sistema de pesca foi altamente produtivo durante alguns anos. A sardinha era tão abundante nesta costa que, em certos anos, os cardumes formavam manchas gigantescas ao lume de água; o jornal setubalense "O Distrito", publicou em 1890 a seguinte notícia:

     "No domingo, um negro de sardinha aproximou-se das armações da Serra, e, antes de entrar no copo as companhas apanharam às canastras peixe para encher seis barcas".

     Ou seja: a concentração de sardinha era tão densa que, antes mesmo de entrar na armação, foi possível encher seis barcas, apenas com recurso a canastras. A expressão "negro de sardinha" decorre possivelmente da mancha escura que os cardumes provocavam.

     Mas durou poucas décadas este "eldorado": em 1932 as armações estavam reduzidas a apenas 15, das quais apenas 5 se mantinham no mar todo o ano. Os proprietários, numa representação ao Governo, queixavam-se da "escassez que há longos meses se vem sentindo". No ano seguinte, foi a Associação da classe dos operários marítimos que pediu ao Governo que, durante os meses de Agosto a Dezembro, os encargos com o pessoal fossem suportados pelo Comissariado do Desemprego, para obstar a que os armadores parassem as armações durante este período. Em 1934 foram os proprietários das armações a dirigir um apelo semelhante: que o Governo suportasse uma parte dos encargos com o pessoal.

     Porém, com a diminuição das pescarias, o destino das armações estava traçado: o seu número foi diminuindo, assim como o número de meses em que cada uma estava no mar. Em alternativa, foi aumentando em Sesimbra o número de traineiras, um sistema de pesca que, ao contrário do que acontecia em Setúbal, nunca fora importante na pequena vila piscatória. Este é um padrão de comportamento que se irá repetir e Sesimbra ao longo do século 20: escasseia o peixe nos mares tradicionais, e procuram-se novos pesqueiros, mais longe. Motorizadas, as barcas demandaram novos "mares" na costa próxima, depois nos bancos do Atlântico (Gorringe, Ampère, Seine...), e depois ainda na costa africana — uma aventura que terminaria abruptamente na viragem do século.

     Em 1950 existiam apenas 9 armações e apenas uma — a Varanda — se mantinha armada todo o ano. A média de tempo no mar era de 7 meses.

     Em 1960 continuavam no mar 9 armações, mas a média do período de pesca não chegava aos 5 meses. Uma curiosidade: em 1968 foi capturado um baleote com 700 kg, também na Varanda.

     Em 1969 o número de armações estava reduzido a 4, e cada uma apenas 4 meses no mar. Eram as seguintes: Risco, Varanda, Cozinhadouro e Greta. Ao longo de um século, tinham sido estas as mais produtivas armações, juntamente com a Agulha (que pescou até 1951) e a Cova, cuja actividade se prolongou até 1966, ano em que as instalações de terra foram ocupadas pela ampliação do Hotel do Mar.

     Nos derradeiros anos de existência, devido à sua baixa produtividade, já atraíam poucos pescadores de Sesimbra, pelo que era numeroso o contingente de algarvios que faziam parte das companhas, matando saudades da sua terra com xerém e cantorias como esta:

               Já não sou Maria Rosa
               Já não sou Rosa Maria
               Bom sapato e boa meia
               Faz a perna luzidia

               Faz a perna luzidia
               Bonita, bela e airosa
               Já não sou Rosa Maria
               Já não sou Maria Rosa

     Vários escritos publicados sobre este sistema de pesca em Sesimbra — e até mesmo o Museu Marítimo — referem que as armações teriam desaparecido na década de 1960, mas não foi bem assim, pois ainda se mantiveram até 1971: e foi este o seu derradeiro ano na Piscosa, matriculando-se 80 pescadores e 20 embarcações, nas duas últimas armações.