terça-feira, 23 de outubro de 2018

Fonte dos Curvais

Na Fonte dos Curvais — na Aldeia do Meco — existe uma curiosa placa, com as letras C M C (Câmara Municipal de Cezimbra) que parece assinalar a data de 10-6-1013. Ora, em 1013 não existia qualquer Câmara Municipal. O mais provável é que a data assinalada seja 1913, ano em que foram feitas obras naquela fonte. De facto, na reunião da Câmara de Sesimbra de 7 de Junho de 1913 foi deliberado "continuar as obras da Fonte dos Curvais e respectivo lavadouro".

Observando a placa com atenção, detecta-se que o segundo algarismo do ano é um zero, mas parece também haver uma emenda para o transformar num nove. Uma possibilidade é que o canteiro autor do trabalho se tenha enganado, e depois se tenha tentado emendar — embora a rasura pareça ter sido feita por alguém com menor habilidade. Quando, mais recentemente, alguém pintou os algarismos, avivou o zero, uma data improvável para a obra de cobertura daquela fonte.

Uma referência mais antiga aos Curvais é da reunião da Câmara de Sesimbra em 23 de Julho de 1896, onde foi deliberado mandar "reparar os chafarizes dos Curvais, do Zambujal e da Califórnia, e colocar uma bica na fonte do Caninho". Como aqui se usa apenas a designação de "chafariz", e na deliberação de 1913 se refere "fonte" e "lavadouro", é provável que só em 1913 é que terá sido feita a cobertura daquele lavadouro, que usa a água da fonte cuja nascente se encontra muito próxima.

Uma outra referência à povoação dos Curvais data de 9 de Janeiro de 1914, quando a Câmara fixou a tabela de preços para deslocações do médico municipal: para uma deslocação aos Curvais, o médico cobraria um escudo (1$00), valor idêntico para sítios como o Cabo Espichel, as Aguncheiras, a Lagoa, a Apostiça e o Parral.

Aldeia do Meco, Alfarim e Fornos pagariam apenas noventa centavos ($90), enquanto os Pinherinhos, o Facho da Azóia, as Caixas, a Aiana de Cima, a Quinta do Pinhal, o Coval da Formiga e Calhariz pagariam $80. Zambujal, Venda Nova, Maçã e Pedreiras pagariam $70.

$60 era a tarifa para a Assenta, o Facho de Santana, a Almoinha e a Quintola de Santana. A tarifa mais baixa, 50 centavos, era devida pelas deslocações a Santana, Corredoura, Sampaio e Cotovia.

O local de residência do médico era a vila de Sesimbra. O vereador Francisco Vieira Real propôs, nesta mesma reunião, que a residência fosse no lugar de Santana mas, posta à votação, a proposta foi rejeitada

Mais tarde, em 1960, a população dos Curvais dirigiu à Câmara um pedido para que "a estrada que liga àquele lugar fosse prolongada até ao mar". Na reunião de 29 de Junho daquele ano, a Câmara deliberou mandar elaborar projecto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

1971: o último ano das armações da sardinha em Sesimbra

(Fotografia de Artur Pastor)
     As armações de pesca da sardinha tiveram a sua origem nos acedares, inventados no século 15, em Sesimbra. Na sua forma mais sofisticada — as armações à valenciana, com duas câmaras, bucho e copo — só apareceram no século 19, sendo referidas pela primeira vez numa escritura de 1866. Impulsionadas pelo sistema capitalista, estas armações espalharam-se rapidamente pela costa da Arrábida, chegando às duas dezenas, localizadas entre o Portinho e o Cabo Espichel — mas outras ainda se instalariam mais a sul, na Costa da Galé.

     Este sistema de pesca foi altamente produtivo durante alguns anos. A sardinha era tão abundante nesta costa que, em certos anos, os cardumes formavam manchas gigantescas ao lume de água; o jornal setubalense "O Distrito", publicou em 1890 a seguinte notícia:

     "No domingo, um negro de sardinha aproximou-se das armações da Serra, e, antes de entrar no copo as companhas apanharam às canastras peixe para encher seis barcas".

     Ou seja: a concentração de sardinha era tão densa que, antes mesmo de entrar na armação, foi possível encher seis barcas, apenas com recurso a canastras. A expressão "negro de sardinha" decorre possivelmente da mancha escura que os cardumes provocavam.

     Mas durou poucas décadas este "eldorado": em 1932 as armações estavam reduzidas a apenas 15, das quais apenas 5 se mantinham no mar todo o ano. Os proprietários, numa representação ao Governo, queixavam-se da "escassez que há longos meses se vem sentindo". No ano seguinte, foi a Associação da classe dos operários marítimos que pediu ao Governo que, durante os meses de Agosto a Dezembro, os encargos com o pessoal fossem suportados pelo Comissariado do Desemprego, para obstar a que os armadores parassem as armações durante este período. Em 1934 foram os proprietários das armações a dirigir um apelo semelhante: que o Governo suportasse uma parte dos encargos com o pessoal.

     Porém, com a diminuição das pescarias, o destino das armações estava traçado: o seu número foi diminuindo, assim como o número de meses em que cada uma estava no mar. Em alternativa, foi aumentando em Sesimbra o número de traineiras, um sistema de pesca que, ao contrário do que acontecia em Setúbal, nunca fora importante na pequena vila piscatória. Este é um padrão de comportamento que se irá repetir e Sesimbra ao longo do século 20: escasseia o peixe nos mares tradicionais, e procuram-se novos pesqueiros, mais longe. Motorizadas, as barcas demandaram novos "mares" na costa próxima, depois nos bancos do Atlântico (Gorringe, Ampère, Seine...), e depois ainda na costa africana — uma aventura que terminaria abruptamente na viragem do século.

     Em 1950 existiam apenas 9 armações e apenas uma — a Varanda — se mantinha armada todo o ano. A média de tempo no mar era de 7 meses.

     Em 1960 continuavam no mar 9 armações, mas a média do período de pesca não chegava aos 5 meses. Uma curiosidade: em 1968 foi capturado um baleote com 700 kg, também na Varanda.

     Em 1969 o número de armações estava reduzido a 4, e cada uma apenas 4 meses no mar. Eram as seguintes: Risco, Varanda, Cozinhadouro e Greta. Ao longo de um século, tinham sido estas as mais produtivas armações, juntamente com a Agulha (que pescou até 1951) e a Cova, cuja actividade se prolongou até 1966, ano em que as instalações de terra foram ocupadas pela ampliação do Hotel do Mar.

     Nos derradeiros anos de existência, devido à sua baixa produtividade, já atraíam poucos pescadores de Sesimbra, pelo que era numeroso o contingente de algarvios que faziam parte das companhas, matando saudades da sua terra com xerém e cantorias como esta:

               Já não sou Maria Rosa
               Já não sou Rosa Maria
               Bom sapato e boa meia
               Faz a perna luzidia

               Faz a perna luzidia
               Bonita, bela e airosa
               Já não sou Rosa Maria
               Já não sou Maria Rosa

     Vários escritos publicados sobre este sistema de pesca em Sesimbra — e até mesmo o Museu Marítimo — referem que as armações teriam desaparecido na década de 1960, mas não foi bem assim, pois ainda se mantiveram até 1971: e foi este o seu derradeiro ano na Piscosa, matriculando-se 80 pescadores e 20 embarcações, nas duas últimas armações.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Iate Real


João Pólvora
Publicado n'O Sesimbrense
em 3.Fevereiro.1929

Foi isto há bastantes anos! (1) O dinheiro chegava a todos. Os sapateiros no dia do casamento iam à igreja de sobrecasaca e chapéu fino, e as raparigas bonitas da minha terra, de simples vestidinhos de chita ou riscado, faziam arregalar o olho à rapaziada brejeira do tempo.

Sesimbra vivia quase ignorada do mundo. Os meios de transporte em ronceiras diligências até Cacilhas, constituíam um suplício tremendo! Quase um dia para chegarmos à Capital com os ossos fora do alinhamento e duzentas pancadas no parceiro do banco fronteiro!... O maior número de visitantes provinha dos lados da Costa da Caparica, à cata de lugar nas artes, indo asilar nas lojas do João Marinheiro e Rafael Rodrigo. O Monarca D. Carlos e a Rainha Amélia, passavam amiúde em frente de Sesimbra no seu Iate, em visita ao Sanatório do Outão (2), mas o barco nunca fundeava na nossa linda baía, mais tarde o ancoradouro predilecto do Rei, após os seus estudos oceanográficos na época propícia. Certo dia passou no nosso porto, como de costume, o iate real, de regresso do Outão, e em frente do Espichel ordenaram por sinais à estação semafórica, que avisassem as autoridades de Sesimbra, de que o iate ia retroceder, para desembarcar ali uma pessoa de bordo. Daquela estação comunicaram porém que o Rei ia desembarcar na praia de Sesimbra!

A notícia correu veloz pela vila, e dentro em pouco quase toda a população comentava o facto, fantasiando a seu belo prazer tão inesperada resolução do Chefe do Estado! O contentamento era geral, e toda a gente saiu de casa para ir à praia presenciar a chegada do Rei.

As autoridades ordenavam à Câmara para mandar proceder a toda a pressa, à limpeza das ruas, pelos Almeidas do burgo, às ordem do simpático «Pisa-Flores» As tradicionais cambadas de carapaus secos e cães do monte, retiraram a penates, e o elemento oficial ordenou a mobilização de quantas casacas e penantes existiam nas gavetas da cómodas e sótãos, transformados em museus de antiguidades. O velho fogueteiro Joaquim Angélico corria pressuroso em direcção à Fortaleza, sobraçando enorme molho de foguetes, e o povoléu em desordenada correria, descia à praia para saudar o régio visitante. Fecharam-se estabelecimentos, paralisaram oficinas, envergaram-se as melhores andainas, compuseram-se os famosos colarinhos à «Pinga Azeite» e, mal o iate surgiu na ponta do Forte do Cavalo, os foguetes estalaram no ar em sucessivas girândolas, anunciando a chegada de D. Carlos de Bragança! No Forte, o Dr. Beles (3) , rodeado das pessoas mais gradas da terra, não parava um momento, concedendo, consecutivamente, o seu binóculo aos presentes.

O barco fundeou na baía, lançando à água um escaler, no qual tomou assento à popa, um homem bastante nutrido. Alguém que assestara nesse momento o binóculo do Dr. Beles em direcção ao escaler, exclama entusiasmado: – É D. Carlos! E que lindo manto ele traz nos ombros!

Quatro garbosos marinheiros conduzem o escaler à terra em rápidas e certeiras remadas. A multidão insofrida comprimia-se a custo no local do desembarque. Ansiosa por ver o Rei, que muitos ainda não tinham visto senão nas moedas de cobre em circulação. Os foguetes continuavam estralejando no ar em enorme quantidade. A alegria era indescritível. Mas… chegada à terra a frágil embarcação, tudo caiu no mais profundo silêncio, redobrando de veemente curiosidade. O personagem que todos julgavam ser o Rei D. Carlos, não passava dum pobre maquinista ou fogueiro que caíra a bordo, partindo um braço e vinha dar entrada no hospital, gemendo com dores, embrulhado numa manta!!! (4)

A multidão debandou rapidamente comentando o caso entre a risota dos mais galhofeiros mirones. O fogueteiro cuspiu no morrão exasperado e alguns casacas, mal contendo a sua arrelia pelo fiasco da recepção desandaram a caminho de casa, taciturnos e melancólicos, a passo cadenciado de gatos pingados que regressam dum enterro no Cemitério dos Prazeres ou do Alto de S. João! E nesta ridícula farsa apenas se salvou o Sol-e-dó que à última hora resolveu não comparecer, por falta de sapatilhas… na flauta do Zé Carvalho…

João Pólvora
Seixal, Janeiro de 1929 (5)


Notas
(1) - O episódio descrito nesta crónica ocorreu em 1891 e foi noticiado pelo jornal republicano A Vanguarda na edição de 15 de Junho daquele ano – veja-se a imagem reproduzida abaixo.

(2) - O Sanatório do Outão só foi criado em 1900. Em rigor, estas reais deslocações marítimas seriam em veraneio, até à Torre do Outão, na entrada da barra de Setúbal, que tinha sido parcialmente adaptada a aposentos reais. O jornal A Vanguarda de 10 de Agosto de 1892 noticia: “As majestades no Outão / Não só se diz que as majestades vão passear até Leiria, Marinha Grande, Batalha e Alcobaça, como noticiam também as folhas palacianas, que o rei e sua família tencionam ir passar algum tempo à Torre do Outão, preparando os habitantes de Setúbal grandes festejos para a sua recepção! Vamos, pois, ter a continuação das desbragadas despesas que há dois anos tornaram célebre a velha torre, transformada em real vivenda por feminil capricho!

(3) - José Marciano Correia Beles, médico municipal. Faleceu em 31-1-1895.

(4) - A notícia do jornal A Vanguarda, referida na nota 1, diz que “desembarcou um fogueiro com um dos braços completamente esmigalhado até ao cotovelo.

(5) - João Gomes Pólvora nasceu em Sesimbra, onde exerceu a profissão de soldador nas fábricas de conserva de peixe. Foi dirigente sindical, tendo feito parte da Direcção da Associação de Classe dos Soldadores. Mais tarde viria a instalar-se no Seixal, como industrial conserveiro. A fábrica de conservas Pólvora, Lda., funcionou no edifício que foi posteriormente adquirido pela Câmara Municipal para instalar a esquadra da Polícia de Segurança Pública e a Repartição de Finanças
Activista político durante a 1ª República, fez parte do Partido Republicano Nacionalista e, já durante a ditadura militar, integrou a Comissão Concelhia da Aliança Republicano-Socialista (1931), que juntava diversas correntes políticas republicanas com o objectivo de fazer oposição política à ditadura militar e ao salazarismo.
Notícia do jornal A Vanguarda de 15-6-1891.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O Leão da Farmácia

A farmácia Leão, actualmente localizada na avenida da Liberdade, em sesimbra, teve a sua origem no século 19, pela mão do Sesimbrense Francisco Pinto de Leão, nascido em 1817, e que obteve o diploma para o exercício das funções de farmacêutico em 1840.
Registo de baptismo de Francisco Pinto de Leão, em 1817.

A família Pinto Leão foi uma das de maior relevo em Sesimbra, remontando a sua genealogia até a uma linhagem de cristãos-novos – ou seja, de judeus convertidos – que foram perseguidos pela Inquisição no início do século 17. Assim, no dia 29 de Março de 1620, foi presa em Sesimbra Beatriz Mendes de Leão, bem como seu sobrinho, o médico António Mendes de Matos. Beatriz Mendes de Leão era irmã de Álvaro de Leão, e também de Manuel Mendes, tendo este último a profissão de médico. A própria Beatriz casou com um médico de Azeitão, João Serrão. As profissões médicas, nessa época, andavam muito associadas aos judeus. Curiosamente, já no século 19, é um outro membro desta família, António Pinto Leão de Oliveira, que também se vai destacar como médico.
Em frente, o prédio onde funcionou a farmácia Leão, e que foi depois demolido
para abertura da avenida da Liberdade. À direita, o prédio do "Pinto Leão".

António Pinto Leão de Oliveira herdou da mãe os apelidos Pinto Leão. O pai, Julião José de Oliveira, foi um conhecido armador sesimbrense, proprietário e mandador de armações de pesca, cuja actividade está documentada entre os anos 1861 e 1870 – precisamente a época em que se começaram a desenvolver as armações pelo sistema valenciano, sucedendo às antigas armações redondas, onde a família Pinto Leão tinha igualmente pergaminhos.

A família Pinto Leão foi proprietária dos terrenos a poente do edifício da Câmara Municipal, onde ainda hoje se encontra o edifício popularmente conhecido como "prédio do Pinto Leão", na antiga rua Direita, actual rua da República – uma construção de finais do século 19 que, durante muito tempo, foi o edifício mais alto de Sesimbra. Não é por isso de admirar que inicialmente a farmácia Leão se tenha instalado nessa correnteza, a poente do prédio do Pinto Leão. Com a demolição de edifícios para abertura da avenida da Liberdade, a farmácia passou para o rés-do-chão do prédio da família Giro, onde ainda hoje se encontra.
Prédio do "Pinto Leão", com fachada para a rua da República
À direita, a rua Leão de Oliveira.

No final do século 19, a farmácia Leão rivalizava com a farmácia Lopes – que também ainda hoje existe – não só no domínio farmacêutico, mas também na arena política, pois as farmácias tornaram-se locais de encontro e de conspiração política, polarizando-se em torno das correntes partidárias que se digladiaram em Sesimbra: os "coques", do Partido Progressista, e os "trapilhas", do Partido Regenerador. A farmácia Leão alinhava pelos "coques", e a farmácia Lopes pelos "trapilhas".
Registo de Francisco Pinto de Leão na Sociedade Pharmaceutica Luzitana (século 19).

Quando se deu a "invasão" de Sesimbra pelos capitalistas vindos de fora, que investiram nas armações valencianas – Caldeiras, Frades, Ruminas, Fernandes, Loureiros – o escol tradicional da pesca sesimbrense resistiu, apoiando-se na antiga Confraria do Espírito Santo dos Mareantes de Sesimbra. Os capitalistas associaram-se ao Partido Progressista, dirigido localmente pela família Caldeira da Costa, e os dirigentes da Confraria ao Partido Regenerador, dirigido localmente pela família Gomes Pólvora.

Esta confrontação partidária assumiu grande violência em 1890, quando os Progressistas tentaram matar a tiro o Administrador do Concelho, de orientação Regeneradora. Em 1897, a Confraria viria a ser tomada de "assalto" pelos progressistas, que a transformaram numa Associação de Socorros Mútuos Marítima e Terrestre, que ainda sobrevive com esta designação. Extinta a Confraria, a sua farmácia privativa acabaria por ficar na posse do farmacêutico contratado, Manuel Mendes Lopes, originário de Ansião. O seu filho, Virgílio de Mesquita Lopes, viria a ser vereador da Câmara, pelo Partido Regenerador, no mandato de 1901-1903, e presidente da Câmara – agora já pelo Partido Democrático – no mandato de 1914 a 1916. Foi também um destacado membro da Maçonaria em Sesimbra.

No início do século XX, ainda essa polarização partidária das farmácias locais se mantinha, com a farmácia Lopes a assumir uma orientação mais à esquerda, e a farmácia Leão mais à direita e mais conservadora. Após o golpe militar conservador de 1926, que instaurou uma ditadura de direita, numa das primeiras revoltas contra a nova situação, em Fevereiro de 1927, esteve implicado o farmacêutico Virgílio de Mesquita Lopes, que esteve preso e prestes a seguir na leva de deportados.

No extremo oposto do arco político, esteve o auxiliar de farmácia e enfermeiro, Emídio de Sena Raposo, oriundo de Mouronho (São Pedro do Sul) e que desenvolveu a sua actividade profissional na farmácia Leão. Em 1913 fez parte da lista candidata à Câmara Municipal de Sesimbra pela facção Unionista do Partido Republicano, sendo eleito, no contingente da "minoria", para o mandato de 1914-1916. Desempenhou um papel bastante activo na oposição a Virgílio de Mesquita Lopes, apresentando diversas propostas, nomeadamente que ao jardim fosse dado o nome do último presidente de Câmara monárquico – António Peixoto Correia, proposta que foi recusada –, para que o feriado municipal fosse no dia de doação do Foral de Sesimbra, e ainda para que fosse criada uma escola mista na aldeia das Pedreiras. Emídio de Sena Raposo, no entanto, viria a falecer ainda durante o ano de 1914, no início de Setembro.

Um jovem sesimbrense que iniciou a sua actividade profissional na farmácia Leão foi Rafael Alves Monteiro, que veio a posicionar-se ideologicamente à direita, apoiante do Estado Novo, embora tenha depois entrado em choque com as autoridades salazaristas, mas sem abandonar o seu posicionamento conservador e nacionalista.

Hoje as farmácias "de cima" e "de baixo" – como também chegaram a ser conhecidas – já não têm cor partidária, mas conservam-se ainda como uma memória viva dos conturbados anos de implantação da democracia parlamentar em Sesimbra.
João Augusto Aldeia

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Peixe Agulha – e não Espadarte!

A "pesca desportiva do espadarte" foi praticada em Sesimbra desde 1954, ano em que foram capturados os primeiros exemplares: o primeiro por Manuel Frade, seguindo-se Arsénio Cordeiro e Fernando Teotónio Pereira. Pelo menos estas duas últimas capturas, tiveram o auxílio do pescador sesimbrense António Vicente ("Guiné").

Apesar do discurso oficial afirmar que se trata de uma pesca "emblemática" de Sesimbra, durou pouco tempo. O ano de maiores capturas foi o de 1958, com 19 peixes, mas a partir daí foram declinando. O ano de 1974, com 5 capturas, pode ser considerado como o último desta pesca, que durou apenas 20 anos. Desde então apenas se registaram capturas esporádicas.

Os pioneiros desta pesca, originários de Lisboa, designaram a espécie como Espadarte, mas em Sesimbra o seu nome era Peixe Agulha.

Consultando os manuscritos de Constantino Lacerda Lobo, redigidos no século 19, verificamos que a designação desta espécie – cujo nome científico é Xiphias Gladius – era, de facto, a de Peixe Agulha. Lacerda Lobo, que recolheu informações, sobretudo junto de pescadores da costa algarvia, escreveu:
  Fazem os Pescadores de Olhão a matança deste peixe em todos os meses do ano no mesmo mar aonde fazem a das Pescadas na profundidade de 100, até 125 braças de água, e distância da terra duas até duas léguas e meia. Não usam de outro aparelho mais do que do Anzol. Encontra-se por toda a Costa. Corta e estraga os Aparelhos e quando morre algum pesa ordinariamente cinco ou seis arrobas.

Manuscrito de Lacerda Lobo onde descreve a pesca do Peixe Agulha
(Biblioteca Nacional)

Nas notas de Lacerda Lobo encontram-se duas espécies com o nome Espadarte: o Espadarte ou Peixe Serra (nome científico, Squalus Pristis) e o Espadarte (nome científico, Esox Brasiliensis). Vejamos qual o "retrato" destas espécies:

Espadarte ou Peixe Serra (Squalus Pristis)

Espadarte (Esox Brasiliensis)


Portanto, os pescadores de Sesimbra estavam certos quando designavam o Xiphias Gladius como Peixe Agulha, e os lisboetas que aqui desenvolveram a sua pesca desportiva, enganaram-se provavelmente na designação, ou então não lhes agradou o nome de Peixe Agulha, optando pela mais romântica designação de Espadarte.

Com o desenvolvimento desta pesca, o sesimbrense José Pinto Braz pensou no seu aproveitamento turístico, e inaugurou, em 1957 (ou seja, três anos depois do início da pesca), a Pensão Espadarte, num edifício já em construção e destinado a habitação e comércio (no rés-do-chão). Mais tarde o estabelecimento obteria a classificação de hotel.

A promoção feita por José Pinto Braz desta pescaria, sobretudo no norte da Europa, em 1962, integrando-se nas missões de promoção turística de iniciativa do Governo, atraiu a Sesimbra grande número de turistas estrangeiros, entre os quais se destacou o francês Pierre Clostermann, que aqui acabou por adquirir uma residência e um barco, só para a prática desta pesca. Pierre Clostermann viria a realizar, em 1973, uma palestra no Clube Sesimbrense (Grémio), onde propôs a criação de um Parque Marítimo na Baía de Sesimbra, que depois viria a ser promovido pela Liga dos Amigos de Sesimbra, numa campanha coordenada por Rafael Monteiro e Orlando Vitorino.

Arsénio Cordeiro viria a escrever um livro sobre esta pesca, centrado sobretudo nos aspectos técnicos da captura, onde não deixa de homenagear os pescadores sesimbrense que, manobrando as suas aiolas, desempenhavam um papel essencial nesta pescaria.

A propósito da pesca do Peixe Agulha, tem de se referir a família Ratinhos, pescadores sesimbrenses, que apuraram a técnica de captura desta espécie com arpão, chegando a apanhar vários exemplares num só dia, sendo muito mais produtivos do que as demoradas e espaçadas capturas dos pescadores desportivos.
Dois Peixes Agulha capturados com arpão pela família Ratinhos.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A epidemia de cólera de 1833

A epidemia de cólera de 1833 atingiu seriamente Sesimbra. Nos cinco anos anteriores, a média anual de mortes, nesta vila, rondava as 92 pessoas — e, neste número, pesava bastante a mortalidade infantil. Porém, em 1933, estão registadas as mortes de 286 pessoas: mas trata-se de um valor subavaliado. O próprio padre encarregado deste registo escreveu que, a este número, se deveriam somar mais 200 mortes, que não chegaram a ficar registadas no livro da paróquia de Santiago. Ou seja: no total, um número de mortes superior a 5 vezes ao que era normal.

"Morreram pouco mais ou menos este ano d'ambos os sexos
— 286, isto é, os que aqui se acham descritos; porém,
morreram muitos mais, andarão por 486 — e que não houve
ocasião de descrever todos, que morreram pela cólera."

O Padre Joaquim Pedro Cardoso.

A cólera já grassava no Norte da Europa desde o ano anterior e sabia-se que inevitavelmente chegaria aos países ibéricos, e essa chegada deve ter sido precipitada pelas movimentações de tropas da guerra civil portuguesa. Manifestou-se, no início de 1933, no porto de Vigo, na Galiza, mas rapidamente se espalhou pela península.

Pelos livros da paróquia de Santiago, verifica-se que o número de mortes começou a aumentar no final de Maio, e que só no mês de Junho se registaram 200 mortes: um número igualmente subavaliado pois, perante a avalanche de vítimas, deixou de se registar o falecimento de recém-nascidos. O gráfico anterior permite ver que foi sobretudo nas primeiras semanas de Junho que a epidemia vitimou os Sesimbrenses. No entanto, entre os dias 29 de Julho e 1 de Outubro não foi feito qualquer registo e, por isso, fica a dúvida sobre o que se terá passado nesse período.

Uma das vítimas foi o doutor Francisco Rodrigues Miranda, médico do partido de Azeitão, enviado por ordem do Governo para tratar dos doentes da vila de Sesimbra, e que morreria da mesma enfermidade a 13 de Junho de 1833.


Voto da Câmara de Lisboa, em 5 de Julho de 1833, para realização de uma
procissão de penitência, "à vista da calamitosa epidemia, que tão
mortífera se tem feito nesta Capital, e muitas partes do Reino".
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sexta-feira, 8 de julho de 2016

Forte do Cavalo:
primeiro parque municipal de campismo em Portugal
Campistas na Mata do Forte do Cavalo
(imagem cedida por Luís Filipe Cagica Pinto.)
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A partir da década de 1930, a Câmara Municipal de Sesimbra iniciou um extenso programa de arborização, para "repovoamento florestal das escalvadas encostas que emolduram esta vila". A zona em redor do Forte do Cavalo (ou de S. Teodósio), foi uma das áreas escolhidas para este programa de arborização, nascendo assim a Mata do Forte do Cavalo. Quando o turismo se começou a popularizar em Sesimbra, foi ali que se instalaram muitos campistas, sobretudo depois que a construção do molhe do porto de abrigo criou a "praia da doca".

Formada em Dezembro de 1951, a Liga dos Amigos do Castelo de Sesimbra teve como uma das suas primeiras iniciativas, a de dotar a Mata do Forte do Cavalo com instalações de apoio aos veraneantes que ali acampavam. A Câmara construiu o equipamento, a partir dum projecto oferecido por João Baptista de Gouveia ("Jojó"), membro da Liga, incluindo: instalações sanitárias, duches, amplos lavatórios e um grande piso exterior abastecido por quatro torneiras, para lavagens diversas.

As instalações foram inauguradas em 31 de Agosto de 1952, com a presença do Presidente da Federação Portuguesa de Campismo, Júlio Rodrigues, e do vogal da mesma Federação, Lyon de Castro. Estiveram também presentes: Carlos Freire (director da revista Campismo), Fernando Alves (presidente do Clube de Campismo do Barreiro), João Saldanha (Grupo Estrela), Francisco Abreu (Clube Campista de Lisboa) e Giordano da Saúde (Secção Campista do Grupo Desportivo da Cova da Piedade). Nessa altura, o jornal O Sesimbrense referiu que aquele melhoramento era "o início do arranjo da mata e da sua adaptação a verdadeiro parque de campismo" [O Sesimbrense n.º 37, II série, 7-9-1952]

Poucos dias depois, a Federação Portuguesa de Campismo comunicou à Câmara Municipal de Sesimbra que os seus corpos gerentes tinham aprovado por unanimidade um voto de agradecimento à Câmara "pelas obras realizadas no primeiro parque Municipal de Campismo do País" (1).

Já em 1953, o Club de Campismo de Lisboa comunicou à Câmara de Sesimbra a deliberação da sua Assembleia Geral de "um voto de agradecimento pela brilhante obra realizada em prol do Campismo Nacional na Mata do Forte do Cavalo".




(1) - A Federação Portuguesa de Campismo fora fundada em 1945, e foi devido aos seus esforços que se criaram os primeiros parques campistas em Portugal, nomeadamente o parque da Costa de Caparica, em 17-6-1952, num pedaço de mata nacional cedido à Federação, devido a diligências de Francisco Lyon de Castro. O primeiro parque de campismo de iniciativa municipal, no entanto, foi o de Sesimbra.