quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O Iate Real


João Pólvora
Publicado n'O Sesimbrense
em 3.Fevereiro.1929

Foi isto há bastantes anos! (1) O dinheiro chegava a todos. Os sapateiros no dia do casamento iam à igreja de sobrecasaca e chapéu fino, e as raparigas bonitas da minha terra, de simples vestidinhos de chita ou riscado, faziam arregalar o olho à rapaziada brejeira do tempo.

Sesimbra vivia quase ignorada do mundo. Os meios de transporte em ronceiras diligências até Cacilhas, constituíam um suplício tremendo! Quase um dia para chegarmos à Capital com os ossos fora do alinhamento e duzentas pancadas no parceiro do banco fronteiro!... O maior número de visitantes provinha dos lados da Costa da Caparica, à cata de lugar nas artes, indo asilar nas lojas do João Marinheiro e Rafael Rodrigo. O Monarca D. Carlos e a Rainha Amélia, passavam amiúde em frente de Sesimbra no seu Iate, em visita ao Sanatório do Outão (2), mas o barco nunca fundeava na nossa linda baía, mais tarde o ancoradouro predilecto do Rei, após os seus estudos oceanográficos na época propícia. Certo dia passou no nosso porto, como de costume, o iate real, de regresso do Outão, e em frente do Espichel ordenaram por sinais à estação semafórica, que avisassem as autoridades de Sesimbra, de que o iate ia retroceder, para desembarcar ali uma pessoa de bordo. Daquela estação comunicaram porém que o Rei ia desembarcar na praia de Sesimbra!

A notícia correu veloz pela vila, e dentro em pouco quase toda a população comentava o facto, fantasiando a seu belo prazer tão inesperada resolução do Chefe do Estado! O contentamento era geral, e toda a gente saiu de casa para ir à praia presenciar a chegada do Rei.

As autoridades ordenavam à Câmara para mandar proceder a toda a pressa, à limpeza das ruas, pelos Almeidas do burgo, às ordem do simpático «Pisa-Flores» As tradicionais cambadas de carapaus secos e cães do monte, retiraram a penates, e o elemento oficial ordenou a mobilização de quantas casacas e penantes existiam nas gavetas da cómodas e sótãos, transformados em museus de antiguidades. O velho fogueteiro Joaquim Angélico corria pressuroso em direcção à Fortaleza, sobraçando enorme molho de foguetes, e o povoléu em desordenada correria, descia à praia para saudar o régio visitante. Fecharam-se estabelecimentos, paralisaram oficinas, envergaram-se as melhores andainas, compuseram-se os famosos colarinhos à «Pinga Azeite» e, mal o iate surgiu na ponta do Forte do Cavalo, os foguetes estalaram no ar em sucessivas girândolas, anunciando a chegada de D. Carlos de Bragança! No Forte, o Dr. Beles (3) , rodeado das pessoas mais gradas da terra, não parava um momento, concedendo, consecutivamente, o seu binóculo aos presentes.

O barco fundeou na baía, lançando à água um escaler, no qual tomou assento à popa, um homem bastante nutrido. Alguém que assestara nesse momento o binóculo do Dr. Beles em direcção ao escaler, exclama entusiasmado: – É D. Carlos! E que lindo manto ele traz nos ombros!

Quatro garbosos marinheiros conduzem o escaler à terra em rápidas e certeiras remadas. A multidão insofrida comprimia-se a custo no local do desembarque. Ansiosa por ver o Rei, que muitos ainda não tinham visto senão nas moedas de cobre em circulação. Os foguetes continuavam estralejando no ar em enorme quantidade. A alegria era indescritível. Mas… chegada à terra a frágil embarcação, tudo caiu no mais profundo silêncio, redobrando de veemente curiosidade. O personagem que todos julgavam ser o Rei D. Carlos, não passava dum pobre maquinista ou fogueiro que caíra a bordo, partindo um braço e vinha dar entrada no hospital, gemendo com dores, embrulhado numa manta!!! (4)

A multidão debandou rapidamente comentando o caso entre a risota dos mais galhofeiros mirones. O fogueteiro cuspiu no morrão exasperado e alguns casacas, mal contendo a sua arrelia pelo fiasco da recepção desandaram a caminho de casa, taciturnos e melancólicos, a passo cadenciado de gatos pingados que regressam dum enterro no Cemitério dos Prazeres ou do Alto de S. João! E nesta ridícula farsa apenas se salvou o Sol-e-dó que à última hora resolveu não comparecer, por falta de sapatilhas… na flauta do Zé Carvalho…

João Pólvora
Seixal, Janeiro de 1929 (5)


Notas
(1) - O episódio descrito nesta crónica ocorreu em 1891 e foi noticiado pelo jornal republicano A Vanguarda na edição de 15 de Junho daquele ano – veja-se a imagem reproduzida abaixo.

(2) - O Sanatório do Outão só foi criado em 1900. Em rigor, estas reais deslocações marítimas seriam em veraneio, até à Torre do Outão, na entrada da barra de Setúbal, que tinha sido parcialmente adaptada a aposentos reais. O jornal A Vanguarda de 10 de Agosto de 1892 noticia: “As majestades no Outão / Não só se diz que as majestades vão passear até Leiria, Marinha Grande, Batalha e Alcobaça, como noticiam também as folhas palacianas, que o rei e sua família tencionam ir passar algum tempo à Torre do Outão, preparando os habitantes de Setúbal grandes festejos para a sua recepção! Vamos, pois, ter a continuação das desbragadas despesas que há dois anos tornaram célebre a velha torre, transformada em real vivenda por feminil capricho!

(3) - José Marciano Correia Beles, médico municipal. Faleceu em 31-1-1895.

(4) - A notícia do jornal A Vanguarda, referida na nota 1, diz que “desembarcou um fogueiro com um dos braços completamente esmigalhado até ao cotovelo.

(5) - João Gomes Pólvora nasceu em Sesimbra, onde exerceu a profissão de soldador nas fábricas de conserva de peixe. Foi dirigente sindical, tendo feito parte da Direcção da Associação de Classe dos Soldadores. Mais tarde viria a instalar-se no Seixal, como industrial conserveiro. A fábrica de conservas Pólvora, Lda., funcionou no edifício que foi posteriormente adquirido pela Câmara Municipal para instalar a esquadra da Polícia de Segurança Pública e a Repartição de Finanças
Activista político durante a 1ª República, fez parte do Partido Republicano Nacionalista e, já durante a ditadura militar, integrou a Comissão Concelhia da Aliança Republicano-Socialista (1931), que juntava diversas correntes políticas republicanas com o objectivo de fazer oposição política à ditadura militar e ao salazarismo.
Notícia do jornal A Vanguarda de 15-6-1891.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O Leão da Farmácia

A farmácia Leão, actualmente localizada na avenida da Liberdade, em sesimbra, teve a sua origem no século 19, pela mão do Sesimbrense Francisco Pinto de Leão, nascido em 1817, e que obteve o diploma para o exercício das funções de farmacêutico em 1840.
Registo de baptismo de Francisco Pinto de Leão, em 1817.

A família Pinto Leão foi uma das de maior relevo em Sesimbra, remontando a sua genealogia até a uma linhagem de cristãos-novos – ou seja, de judeus convertidos – que foram perseguidos pela Inquisição no início do século 17. Assim, no dia 29 de Março de 1620, foi presa em Sesimbra Beatriz Mendes de Leão, bem como seu sobrinho, o médico António Mendes de Matos. Beatriz Mendes de Leão era irmã de Álvaro de Leão, e também de Manuel Mendes, tendo este último a profissão de médico. A própria Beatriz casou com um médico de Azeitão, João Serrão. As profissões médicas, nessa época, andavam muito associadas aos judeus. Curiosamente, já no século 19, é um outro membro desta família, António Pinto Leão de Oliveira, que também se vai destacar como médico.
Em frente, o prédio onde funcionou a farmácia Leão, e que foi depois demolido
para abertura da avenida da Liberdade. À direita, o prédio do "Pinto Leão".

António Pinto Leão de Oliveira herdou da mãe os apelidos Pinto Leão. O pai, Julião José de Oliveira, foi um conhecido armador sesimbrense, proprietário e mandador de armações de pesca, cuja actividade está documentada entre os anos 1861 e 1870 – precisamente a época em que se começaram a desenvolver as armações pelo sistema valenciano, sucedendo às antigas armações redondas, onde a família Pinto Leão tinha igualmente pergaminhos.

A família Pinto Leão foi proprietária dos terrenos a poente do edifício da Câmara Municipal, onde ainda hoje se encontra o edifício popularmente conhecido como "prédio do Pinto Leão", na antiga rua Direita, actual rua da República – uma construção de finais do século 19 que, durante muito tempo, foi o edifício mais alto de Sesimbra. Não é por isso de admirar que inicialmente a farmácia Leão se tenha instalado nessa correnteza, a poente do prédio do Pinto Leão. Com a demolição de edifícios para abertura da avenida da Liberdade, a farmácia passou para o rés-do-chão do prédio da família Giro, onde ainda hoje se encontra.
Prédio do "Pinto Leão", com fachada para a rua da República
À direita, a rua Leão de Oliveira.

No final do século 19, a farmácia Leão rivalizava com a farmácia Lopes – que também ainda hoje existe – não só no domínio farmacêutico, mas também na arena política, pois as farmácias tornaram-se locais de encontro e de conspiração política, polarizando-se em torno das correntes partidárias que se digladiaram em Sesimbra: os "coques", do Partido Progressista, e os "trapilhas", do Partido Regenerador. A farmácia Leão alinhava pelos "coques", e a farmácia Lopes pelos "trapilhas".
Registo de Francisco Pinto de Leão na Sociedade Pharmaceutica Luzitana (século 19).

Quando se deu a "invasão" de Sesimbra pelos capitalistas vindos de fora, que investiram nas armações valencianas – Caldeiras, Frades, Ruminas, Fernandes, Loureiros – o escol tradicional da pesca sesimbrense resistiu, apoiando-se na antiga Confraria do Espírito Santo dos Mareantes de Sesimbra. Os capitalistas associaram-se ao Partido Progressista, dirigido localmente pela família Caldeira da Costa, e os dirigentes da Confraria ao Partido Regenerador, dirigido localmente pela família Gomes Pólvora.

Esta confrontação partidária assumiu grande violência em 1890, quando os Progressistas tentaram matar a tiro o Administrador do Concelho, de orientação Regeneradora. Em 1897, a Confraria viria a ser tomada de "assalto" pelos progressistas, que a transformaram numa Associação de Socorros Mútuos Marítima e Terrestre, que ainda sobrevive com esta designação. Extinta a Confraria, a sua farmácia privativa acabaria por ficar na posse do farmacêutico contratado, Manuel Mendes Lopes, originário de Ansião. O seu filho, Virgílio de Mesquita Lopes, viria a ser vereador da Câmara, pelo Partido Regenerador, no mandato de 1901-1903, e presidente da Câmara – agora já pelo Partido Democrático – no mandato de 1914 a 1916. Foi também um destacado membro da Maçonaria em Sesimbra.

No início do século XX, ainda essa polarização partidária das farmácias locais se mantinha, com a farmácia Lopes a assumir uma orientação mais à esquerda, e a farmácia Leão mais à direita e mais conservadora. Após o golpe militar conservador de 1926, que instaurou uma ditadura de direita, numa das primeiras revoltas contra a nova situação, em Fevereiro de 1927, esteve implicado o farmacêutico Virgílio de Mesquita Lopes, que esteve preso e prestes a seguir na leva de deportados.

No extremo oposto do arco político, esteve o auxiliar de farmácia e enfermeiro, Emídio de Sena Raposo, oriundo de Mouronho (São Pedro do Sul) e que desenvolveu a sua actividade profissional na farmácia Leão. Em 1913 fez parte da lista candidata à Câmara Municipal de Sesimbra pela facção Unionista do Partido Republicano, sendo eleito, no contingente da "minoria", para o mandato de 1914-1916. Desempenhou um papel bastante activo na oposição a Virgílio de Mesquita Lopes, apresentando diversas propostas, nomeadamente que ao jardim fosse dado o nome do último presidente de Câmara monárquico – António Peixoto Correia, proposta que foi recusada –, para que o feriado municipal fosse no dia de doação do Foral de Sesimbra, e ainda para que fosse criada uma escola mista na aldeia das Pedreiras. Emídio de Sena Raposo, no entanto, viria a falecer ainda durante o ano de 1914, no início de Setembro.

Um jovem sesimbrense que iniciou a sua actividade profissional na farmácia Leão foi Rafael Alves Monteiro, que veio a posicionar-se ideologicamente à direita, apoiante do Estado Novo, embora tenha depois entrado em choque com as autoridades salazaristas, mas sem abandonar o seu posicionamento conservador e nacionalista.

Hoje as farmácias "de cima" e "de baixo" – como também chegaram a ser conhecidas – já não têm cor partidária, mas conservam-se ainda como uma memória viva dos conturbados anos de implantação da democracia parlamentar em Sesimbra.
João Augusto Aldeia