segunda-feira, 2 de maio de 2016

Pesca Luminosa
Peixe rato (Malacocephalus laevis).
Gravura de Hábitos alimentares do Peixe-rato, de Pedro M. D. Gomes.

Na sessão Academia de Ciências de Lisboa do dia 2 de Novembro de 1911, o académico Baltasar Osório fez uma comunicação sobre “um processo original que os pescadores de Cezimbra empregam há muito tempo para atrair os peixes, e que envolve fenómenos científicos do mais alto interesse”. Tratava-se da pesca denominada ao candil, utilizando uma isca luminosa, por meio dum líquido extraído do peixe rato. Já Baldaque da Silva, em 1891, fizera referência a esta técnica, mas a descrição de Baltasar Osório é mais detalhada, pelo que a reproduzimos mais adiante.

Baltasar Osório (1855-1926) foi um cientista português, ictiologista e naturalista, que também foi director da Secção Zoológica da Secção Zoológica do Museu Bocage – o Museu Nacional de História Natural e da Ciência, localizado na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa.

Baltasar Osório viria depois a publicar esta descoberta no livro “Memórias do Museu Bocage”, que transcrevemos a seguir. Neste texto é frequentemente citada a publicação Challenger Report: trata-se de uma obra em vários volumes, resultado da viagem de investigação realizada a bordo do navio britânico Challenger, nos anos de 1873 a 1876.
Exemplares do Museu Nacional de História Natural e da Ciência


Fenómenos de fosforescência manifestados
num líquido extraído dum peixe
da profundidade do Oceano
Baltasar Osório

Os pescadores de Cezimbra empregam há muitos anos, para atrair os peixes, um processo que é sem dúvida original, e que me despertou a ideia de intentar um certo número de investigações científicas, cujos resultados, por enquanto muito incompletos, por falta de material necessário para a continuação dos meus estudos, me pareceu todavia dever tornar desde já conhecidos, por serem muito interessantes.

Exporei em primeiro lugar a notícia dos factos colhidos directamente da narrativa dos pescadores.

Descobriram eles, há séculos? Como? Quem sabe? que um peixe que vive no oceano, a uma profundidade que pelas indicações que me deram, pode calcular-se entre trezentos ou quatrocentos metros (1), produzia uma substância luminosa, que depois de espalhada sobre uma camada pouco espessa de tecido muscular, aderente à pele de determinadas espécies de esqualos, Pata-roxa (Scillium canicula, Cuv.), Litão ou Leitão, (Pristiurus Artedi, Risso), Cão do monte (?) a tornam por sua vez luminosa.

Algumas horas depois de terem executado esta operação (que diga-se de passagem, interpretei como uma fase de cultura de bactérias), cortam a pele do esqualo em fragmentos, e prendem um deles a uma linha de pesca, mas de modo que fique superior aos diferentes anzóis que à mesma linha têm ligado; e preparam desta arte muitas linhas quando deliberam ir pescar aos lugares profundos do oceano.

Afirmam também os pescadores que o fenómeno de fosforescência a que tenho aludido, se activa quando a pele do esqualo preparada como disse, e a que chamam candil, está mergulhada na água do mar, e que mesmo a recobra, quando perdida, se a pele não está seca há muitos dias.

Os pescadores quando lhes falta o isco, e não têm portanto outro meio para atrair os peixes, servem-se do candil, e não duvidam dar 4$500 réis, quantia sem dúvida muito elevada para eles, por um exemplar de peixe produtor da substância luminosa, a que de resto, noutras ocasiões, não dão valor absolutamente nenhum, pois nem ao menos se vende para a alimentação.

Eis tudo quanto alcancei saber dos pescadores de Cezimbra, acerca do Peixe-rato, (tal é o nome vulgar) que é abundantíssimo na região do mar onde eles vão à pesca, mas que me não consta que tenha sido colhido em qualquer outro ponto da costa de Portugal. Afirmações bastante vagas dizem-me que se tem colhido também perto de Cascais.

Tendo perguntado aos pescadores, antes de eu mesmo poder verificar o facto, de onde surdia ou provinha a substância luminosa de que eles me falavam, deram-me diferentes opiniões. Disseram-me que provinha do fígado, outros, do fel, um pouco melhor observador, do umbigo.

Procurei, para esclarecer-me, assistir à preparação do candil, destinado à pesca do pargo, da pescada e de outros peixes.

Na minha presença, um pescador premiu com os dedos a região abdominal do peixe portador da substância luminosa, que vi surgir numa papila cupuliforme, negra, como tinta de Nanquim, e que fica abaixo de duas depressões igualmente negras que se encontram na região compreendida entre as barbatanas abdominais e a anal. À luz do dia, ou à luz artificial essa substância tinha o aspecto de um líquido denso, amarelo, turvo. Às escuras, o líquido aludido, assim como toda a região onde ele se tinha derramado, apresentava uma luz azul intensa, assemelhando-se pela cor à do óxido de carbono ardendo, à cor azul que se manifesta em muitas substâncias comburentes ao arderem lenta e incompletamente, ou no princípio de algumas combustões.

Um pescador friccionou um bocado de esqualo, (a pele a que havia ficado aderente uma porção de tecido muscular que previamente tinha tirado em parte, raspando-o), com a região de onde surgia o líquido luminoso. Feito isto dobrou-o de modo a ficarem em contacto as partes friccionadas, talvez com o fim de evitar a acção mais directa do ar, ou para distribuir melhor a substância; não averiguei.

A luminosidade, manifestou-se imediatamente e embora bastante fraca, mantinha-se ainda ao cabo de vinte horas num recinto onde decorreu a experiência e cuja temperatura deveria ser aproximadamente de 20º centigrados, ou um pouco superior (mês de Setembro).

Interessava-me em primeiro lugar determinar a espécie zoológica de que provinha a substância luminosa. Afigurou-se-me que era o Malacocefalus laevis, Lowe, e um estudo demorado a que depois procedi, confirmou-me esta opinião.

Determinada a espécie, devo porém notar que o M. laevis, Lowe, é tido como excessivamente raro por Moreau que lhe assinala como habitat apenas o Mediterrâneo.

Goode and Bean ocupando-se desta espécie (2) citam apenas o exemplar tipo colhido por Lowe na ilha da Madeira, e dizem que Lútken a colheu na costa da Dinamarca. Gunther refere que a expedição celebre do Challenger (3) colheu apenas um indivíduo na costa de Pernambuco a uma profundidade de 250 pés. No Catálogo de Peixes do Museu Britânico (4) aponta ainda um terceiro exemplar, colhido na lha da Madeira, por Johnston.

Eis todas as notícias que consegui alcançar acerca dos exemplares que são mencionados nas obras de ictiologia e destas citações pode a meu ver aferir-se que o Malacocefalus laevis é raro em toda a parte; mas em Cezimbra esta espécie é extremamente vulgar.

Os pescadores o dizem e eu pude convencer-me desta verdade. Ainda há poucos dias comprei aos pescadores seis exemplares. A existência de nome popular duma espécie é, a meu ver, muitas vezes, indicador da sua abundância ou aparecimento frequente.

Donde provem o líquido que contem a substância luminosa a que por mais duma vez tenho aludido neste escrito?

Na região compreendida entre as barbatanas abdominais e a anal existem duas depressões, com o aspecto de manchas negras retintas, como já disse.

A primeira tem uma forma triangular, a segunda uma forma discóide. Adiante desta existe uma protuberância cupuliforme, ou saliência mamilar, não uma depressão oval, como se vê na figura h da estampa XXXIX do t. XXII do Challenger Report. Esta saliência observada à lupa apresenta varias aberturas, uma na parte mais elevada, e outras em outros pontos, e por elas sai, quando premida a região abdominal, o líquido amarelado a que me referi e que se manifesta luminoso na obscuridade. Julgo porém necessário um estudo histológico — talvez o anatómico baste, mas mais acurado, para esclarecimento completo da estrutura do órgão mencionado, tratando-se evidentemente da papila em que nos peixes vem abrir-se o tubo digestivo, o canal condutor das células reprodutoras e a uretra.

Peixe rato (Malacocephalus laevis).

Será a saliência mamilar um órgão especial, uma glândula, destinada a segregar a substância luminosa, que se encontra na terminação do intestino? Embora me pareça que o estudo anatómico rigoroso é indispensável para melhor esclarecimento da opinião, todavia parece-me poder afirmar com segurança que o ânus está colocado no órgão cupuliforme a que me reporto, e não numa depressão como diz Gunther (5).

A falta de exemplares para poder continuar as pesquisas que o meu problema demanda, por terem os pescadores de Cezimbra deixado de ir, nesta época do ano, pescar à região do Oceano a que eles chamam o mar de fora, obrigou-me a adiar para mais tarde esta e outras investigações que todavia são do meu programa. Os exemplares que possuo e que tive de conservar em álcool não me permitem servir-me deles senão para o fim para que os destinei.

Uma pergunta ocorre naturalmente e para ela procurei uma resposta. Que papel, que fim, terá na vida do Malacocefalus laevis o líquido luminoso que dele provém ?

Parece-me admissível e justificável a seguinte hipótese. Vivendo numa grande profundidade onde a treva é absoluta (6) muitos animais marinhos precisam para andarem ou para descobrirem as presas de que se alimentam iluminar um espaço mais ou menos vasto.

Muitos animais que vivem nos oceanos, quer vertebrados, quer invertebrados, são dotados de aparelhos de iluminação que visam naturalmente a algum destes fins. O peixe a que me refiro poderá iluminar, espalhando o líquido luminoso, uma área maior ou menor do fundo do mar e a que os animais de que se nutre são provavelmente atraídos, aproveitando-se ele, colocado numa zona menos esclarecida, desta circunstância para os surpreender e captar.

Disseram-me os pescadores que quando alguns exemplares, mesmo depois de mortos (7), estão, por exemplo, dentro dum balde contendo água do mar, que a água se torna luminosa.

Para verificar se o líquido luminoso emanado do peixe, comunica realmente esta propriedade à água, colhi-o por diversas vezes, premindo lateralmente o abdómen dum dos meus exemplares, com uma agulha de dissecção, que fui lavando repetidamente na água, com que tinha enchido perto da praia, um pequeno tubo de vidro. Colocado o tubo num lugar escuro vi imediatamente que toda a água emitia uma claridade azulada bem visível a alguns metros de distância. Verificaram este facto diversas pessoas a quem convidei para a observar porém era menos intensa, e principalmente menos azulada da que eu tinha notado, observando o líquido não diluído que saia do peixe.

A luz durou pelo menos doze horas, ao cabo das quais fui impedido por diversas circunstâncias de continuar a minha observação; verifiquei todavia que embora atenuada por fim, existiu durante esse tempo. Sendo, portanto, indubitavelmente luminoso o líquido, desejei saber a causa desta propriedade; se era devida a uma substância orgânica semelhante àquela a que muitos animais, quer vertebrados quer invertebrados, devem a fosforescência que exibem, se a um micróbio, a uma bactéria fosforescente em suspensão nele. As minhas observações, incompletas pelos motivos já expostos, permitem-me contudo abalançar-me a formular uma hipótese; exames microscópicos que terei de repetir devem fornecer-me argumentos definitivos para sustentar a minha opinião. Tudo me leva a crer, todavia, que a luz é proveniente duma bactéria vivendo na parte terminal do aparelho digestivo do peixe, como tantas outras que se encontram no intestino doutros animais, realizando mesmo talvez um fenómeno de simbiose, e isto pelas seguintes razões:

1.ª porque das preparações microscópicas embora executadas em condições de somenos rigor, deriva a minha presunção de que são bactérias os corpos que nelas observei;

2.ª porque se é exacta uma observação dos pescadores, já mencionada, isto é, que o fragmento dum peixe sobre que se espalha a substância luminosa obtida do Malacocephalus laevis, Lowe, depois estar exposto ao ar durante alguns dias se torna novamente luminoso quando se mergulha na agua do mar, ou que a luminosidade atenuada recrudesce, quando em idênticas circunstâncias, deve pensar-se, a meu ver, que estes fenómenos podem ser explicados pela revivescência, que é um fenómeno bastante comum aos animais inferiores.

Um outro fenómeno observei, e que é talvez o mais interessante entre todas as pesquisas feitas até agora: é a acção produzida no papel fotográfico pela luz fornecida pelo líquido luminoso.

Coloquei dentro duma cavidade cilíndrica, aberta num fragmento de madeira, um tubo de vidro contendo água do mar colhida na costa, e em que dissolvi o líquido fosforescente, extraído, pelo processo que deixei exposto, directamente do órgão aludido de que ele promana. A parede da cavidade cilíndrica, assim como o fundo, estava completamente coberta de papel fotográfico.

Mantive o tubo contendo a água do mar fosforescente dentro da cavidade cilíndrica, durante vinte horas aproximadamente, porque não me encontrei em condições de verificar mais cedo se o papel tinha sido impressionado, mas julgo que o fenómeno luminoso não devia ter durado tanto tempo, porque ao cabo de doze horas já se tinha atenuado muito num outro tubo encerrando uma porção de líquido igual ao incluído na caixa.

Tendo evitado cuidadosamente que qualquer outra luz que não fosse a que partia da agua fosforescente, actuasse sobre o papel fotográfico, revelei o que tinha colocado dentro da caixa de madeira de paredes espessas que tinha mandado preparar, estando esta ainda, por cautela, encerrada dentro doutra de cartão e cujas paredes serão completamente negras. Verifiquei que o papel tinha sido fortemente impressionado como se estivesse exposto à luz directa do sol, e quase completamente. Havia apenas um espaço aproximadamente circular, de milímetro e meio de diâmetro, na parte do papel que revestia o fundo da cavidade, e pequenas áreas que ficavam na altura da rolha de cortiça que vedava o tubo, em que a luz não tinha actuado.

No prosseguimento do meu estudo pretendo principalmente determinar:

1.º - os caracteres da bactéria a que aludi, acentuando desde já que bactérias luminosas de que tenho notícia nenhuma produz luz, azul com tão grande intensidade pelo menos;
2.º - verificar se a luz que dela parte tem propriedades radioactivas, isto é, se torna fluorescente o alvo coberto de platinocianureto de potássio; se o tubo onde estão encerradas, coberto de papel negro ou coberto de laminas delgadas de metal, de alumínio, por exemplo, impressiona ainda nestas condições o papel fotográfico, etc.
3.º - Desejo determinar qual é o tempo mínimo necessário para o sal de prata ser decomposto.
4.º - Desejo sujeitar à análise espectral a luz emitida. Poderá ela revelar a existência dum novo elemento químico? Se a terra e se a atmosfera têm fornecido a maior parte dos metais e metalóides conhecidos, é licito supor que o mar, pela sua vastidão, ou a superfície da crosta sólida do globo que ele cobre, por mais extensa, contem alguns elementos de que não temos noticia até agora; se se tivessem analisado os gazes que encerra a bexiga-natatória dos peixes, mesmo daqueles que vivem a mais de mil metros de profundidade, ter-se-ia descoberto o Árgon que primeiro se encontrou na, atmosfera.

Não será lícito supor que nos animais marítimos, como nas plantas marítimas, em que se encontram o bromo, o iodo e o cloro, etc., se encontrem outros corpos simples ainda desconhecidos?

Completaremos esta nota com o resultado dos estudos que vamos continuar.

O maior dos exemplares de Malucoceplialus laevis que obtive, até agora, mede mais de 20 polegadas e meia; é maior portanto que o exemplar tipo da espécie descrita por Lowe e existente no Museu britânico pois este mede só 19 polegadas. A descrição de Gunther é tão exacta que julgo desnecessária a junção de qualquer outro carácter para a completar.

Moreau diz que a cauda do peixe é filiforme. Infelizmente todos os exemplares que possuo têm a cauda quebrada; não posso portanto infirmar ou confirmar a existência deste carácter que o Dr. Gunter de resto não menciona.

Notas
(1) — Disse-me um pescador que para colher os peixes luminosos é preciso lançar no mar vinte linhas. Cada linha tem dez braças de comprimento. Cada braça pode calcular-se entre um fio a 1m,60 portanto 20 x 10 x 1,6 = 320 metros. Outro pescador porém, disse-me que não são precisas tantas linhas.
(2) — Oceanic Ichthyology - pág. 416.
(3) — Challenger Report - t. XX pág. 148.
(4) — Loc. cit. t. IV pag. 397.
(5) — The vent (fig. b) is close to the root of the ventrals, wich reach, beyond it; it lies at the end of an oval scaless depression,... Challenger Report - t. XXII pg. 148
(6) — Wyville Thomson diz no seu tão interessante livro “The Depths of the sea” (pág. 45) que a flora marítima é pobremente representada a uma profundidade de 50 pés e que não existe (entirely absent) à profundidade de 200 pés. O peixe de que me ocupo nesta memória vive numa profundidade ainda maior, onde portanto a luz não chega.
(7) — Dizem também que este peixe morre com extrema facilidade.