terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O Leão da Farmácia

A farmácia Leão, actualmente localizada na avenida da Liberdade, em sesimbra, teve a sua origem no século 19, pela mão do Sesimbrense Francisco Pinto de Leão, nascido em 1817, e que obteve o diploma para o exercício das funções de farmacêutico em 1840.
Registo de baptismo de Francisco Pinto de Leão, em 1817.

A família Pinto Leão foi uma das de maior relevo em Sesimbra, remontando a sua genealogia até a uma linhagem de cristãos-novos – ou seja, de judeus convertidos – que foram perseguidos pela Inquisição no início do século 17. Assim, no dia 29 de Março de 1620, foi presa em Sesimbra Beatriz Mendes de Leão, bem como seu sobrinho, o médico António Mendes de Matos. Beatriz Mendes de Leão era irmã de Álvaro de Leão, e também de Manuel Mendes, tendo este último a profissão de médico. A própria Beatriz casou com um médico de Azeitão, João Serrão. As profissões médicas, nessa época, andavam muito associadas aos judeus. Curiosamente, já no século 19, é um outro membro desta família, António Pinto Leão de Oliveira, que também se vai destacar como médico.
Em frente, o prédio onde funcionou a farmácia Leão, e que foi depois demolido
para abertura da avenida da Liberdade. À direita, o prédio do "Pinto Leão".

António Pinto Leão de Oliveira herdou da mãe os apelidos Pinto Leão. O pai, Julião José de Oliveira, foi um conhecido armador sesimbrense, proprietário e mandador de armações de pesca, cuja actividade está documentada entre os anos 1861 e 1870 – precisamente a época em que se começaram a desenvolver as armações pelo sistema valenciano, sucedendo às antigas armações redondas, onde a família Pinto Leão tinha igualmente pergaminhos.

A família Pinto Leão foi proprietária dos terrenos a poente do edifício da Câmara Municipal, onde ainda hoje se encontra o edifício popularmente conhecido como "prédio do Pinto Leão", na antiga rua Direita, actual rua da República – uma construção de finais do século 19 que, durante muito tempo, foi o edifício mais alto de Sesimbra. Não é por isso de admirar que inicialmente a farmácia Leão se tenha instalado nessa correnteza, a poente do prédio do Pinto Leão. Com a demolição de edifícios para abertura da avenida da Liberdade, a farmácia passou para o rés-do-chão do prédio da família Giro, onde ainda hoje se encontra.
Prédio do "Pinto Leão", com fachada para a rua da República
À direita, a rua Leão de Oliveira.

No final do século 19, a farmácia Leão rivalizava com a farmácia Lopes – que também ainda hoje existe – não só no domínio farmacêutico, mas também na arena política, pois as farmácias tornaram-se locais de encontro e de conspiração política, polarizando-se em torno das correntes partidárias que se digladiaram em Sesimbra: os "coques", do Partido Progressista, e os "trapilhas", do Partido Regenerador. A farmácia Leão alinhava pelos "coques", e a farmácia Lopes pelos "trapilhas".
Registo de Francisco Pinto de Leão na Sociedade Pharmaceutica Luzitana (século 19).

Quando se deu a "invasão" de Sesimbra pelos capitalistas vindos de fora, que investiram nas armações valencianas – Caldeiras, Frades, Ruminas, Fernandes, Loureiros – o escol tradicional da pesca sesimbrense resistiu, apoiando-se na antiga Confraria do Espírito Santo dos Mareantes de Sesimbra. Os capitalistas associaram-se ao Partido Progressista, dirigido localmente pela família Caldeira da Costa, e os dirigentes da Confraria ao Partido Regenerador, dirigido localmente pela família Gomes Pólvora.

Esta confrontação partidária assumiu grande violência em 1890, quando os Progressistas tentaram matar a tiro o Administrador do Concelho, de orientação Regeneradora. Em 1897, a Confraria viria a ser tomada de "assalto" pelos progressistas, que a transformaram numa Associação de Socorros Mútuos Marítima e Terrestre, que ainda sobrevive com esta designação. Extinta a Confraria, a sua farmácia privativa acabaria por ficar na posse do farmacêutico contratado, Manuel Mendes Lopes, originário de Ansião. O seu filho, Virgílio de Mesquita Lopes, viria a ser vereador da Câmara, pelo Partido Regenerador, no mandato de 1901-1903, e presidente da Câmara – agora já pelo Partido Democrático – no mandato de 1914 a 1916. Foi também um destacado membro da Maçonaria em Sesimbra.

No início do século XX, ainda essa polarização partidária das farmácias locais se mantinha, com a farmácia Lopes a assumir uma orientação mais à esquerda, e a farmácia Leão mais à direita e mais conservadora. Após o golpe militar conservador de 1926, que instaurou uma ditadura de direita, numa das primeiras revoltas contra a nova situação, em Fevereiro de 1927, esteve implicado o farmacêutico Virgílio de Mesquita Lopes, que esteve preso e prestes a seguir na leva de deportados.

No extremo oposto do arco político, esteve o auxiliar de farmácia e enfermeiro, Emídio de Sena Raposo, oriundo de Mouronho (São Pedro do Sul) e que desenvolveu a sua actividade profissional na farmácia Leão. Em 1913 fez parte da lista candidata à Câmara Municipal de Sesimbra pela facção Unionista do Partido Republicano, sendo eleito, no contingente da "minoria", para o mandato de 1914-1916. Desempenhou um papel bastante activo na oposição a Virgílio de Mesquita Lopes, apresentando diversas propostas, nomeadamente que ao jardim fosse dado o nome do último presidente de Câmara monárquico – António Peixoto Correia, proposta que foi recusada –, para que o feriado municipal fosse no dia de doação do Foral de Sesimbra, e ainda para que fosse criada uma escola mista na aldeia das Pedreiras. Emídio de Sena Raposo, no entanto, viria a falecer ainda durante o ano de 1914, no início de Setembro.

Um jovem sesimbrense que iniciou a sua actividade profissional na farmácia Leão foi Rafael Alves Monteiro, que veio a posicionar-se ideologicamente à direita, apoiante do Estado Novo, embora tenha depois entrado em choque com as autoridades salazaristas, mas sem abandonar o seu posicionamento conservador e nacionalista.

Hoje as farmácias "de cima" e "de baixo" – como também chegaram a ser conhecidas – já não têm cor partidária, mas conservam-se ainda como uma memória viva dos conturbados anos de implantação da democracia parlamentar em Sesimbra.
João Augusto Aldeia